É uma carga de trabalhos, é verdade, mas depois sabe tão bem a explosão, é uma libertação, um deixar de temer. Tudo começa com a espera minuciosa de quem conta os dias. Não que se saiba quantos serão, mas a relevância de um número está no anúncio do seguinte. Este é o trabalho da minha vida. Eu, o amor de Zé e Joaninha, sou uma insatisfeita soma acumulada, tenho o valor da semente. Germino em silêncio. Nos olhares de Zé e Joaninha não, mas da boca deles não sai uma palavra, pelo menos que os outros possam ouvir. Sussurram em monossílabos, sim, na cama, com os corpos encostados nem se pode dizer que isso seja falar. As línguas primordiais devem ter sido terrivelmente húmidas, sendo a sua diversidade culpa da distância. Mas isso já não é para mim. Eu sou mais como uma língua dentro de outra língua. Em que a de fora não se cala à minha procura. Presente-me, encosta-se mais e mais a mim, e para isso fala e fala, complexifica-se. E para lhe fazer a vontade lá vou eu no escuro, de dois para quatro, de quatro para oito. Também tenho as minhas fraquezas, dou-lhes motivos para falar. Mas ao princípio, de fora não se nota nada. Nem sequer a mais leve suspeita. Para todos os outros sou apenas fruto da imaginação. A não ser para o Zé e a Joaninha que trabalham com essa língua exterior feita de sobressaltos. Temores, por vezes, de que se venha a saber, tristezas, outras vezes, de que nunca chegue a acontecer. E se me multiplico é antes de mais para os acalmar. Penso que lhes devo dar algum sinal. Um conforto. Tenham calma, vai ocorrer. Para essa certeza não há como um bater contínuo e regular. Uma prova de que estou em movimento. Sei da alegria que lhes dei primeiro, e do renovado temor depois. Agora passam eles o tempo à escuta desse bater, a imaginar o progresso a partir de fora. Fazem planos de como irá ser. Agora sim, falam e falam com entusiasmo, disto e daquilo. E de repente calam-se, olham para os lados assustados, com o receio de estarem a ser ouvidos. Põem-se à espreita para se certificarem que nada interfere com o meu bater. Mas eu já não sei fazer mais nada do que crescer. Talvez até me incomode tanta cautela. Então, não era isto que queríeis, pergunto-lhes, uma vez em marcha não há volta atrás. É nesses momentos que me dá alguma neura, soqueio e pontapeio. Não com a regularidade com que bato, mas como quem já não se importa com as sequelas. E lá estão as mãos do Zé e da Joaninha a procurar acalmar-me. Chega de inquietações, digo-lhes para os vivificar, a sede de uma espera só se estanca na torrente. Mas sinto-os hesitantes, pensaram-me, desejaram-me, e agora falta-lhes a imaginação de quem nunca antes por aqui passou. Está então nas minhas mãos. Dou voltas e mais voltas à situação. Empurro daqui, puxo para acolá. E então ocorre-me que talvez o mundo não tenha que ser assim, que esteja de pernas para o ar. Esse é o problema. Dou uma volta e tudo faz sentido. Então, de madrugada, de entre as pernas de Joaninha rebento em sangue e flores, e sinto a liberdade de deixar de ser apenas eu, o amor de Zé e Joaninha. Afonso.