Esta é uma história sobre a sociedade sem classes. Se tudo correr bem deverá acabar assim: Era uma vez uma sociedade sem classes onde o lobo e o cordeiro se alimentarão juntos, e o leão comerá feno, do mesmo modo que os bovinos se alimentam, mas pó será a comida da serpente!
Contudo, não nos apressemos, como em todas as histórias devemos começar pelo princípio se queremos chegar ao fim. E no princípio o lobo, o cordeiro, o leão, os bovinos e a serpente vão num avião, e nem sequer vão sozinhos.
O voo está completamente cheio. Também não admira. Era o voo número 345 para a sociedade sem classes. Por isso logo os bilhetes se esgotaram. Quem não gosta de ir para uma sociedade sem classes?
Bom, o leão foi, mas um pouco a contragosto, convenhamos, depois de muito aduzir. Quem o persuadiu foi a sua esposa, a leoa, que já há algum tempo se tinha convencido que comer muita carne não é de todo saudável. E tanto disso se convenceu que ela própria acabou por não comer nenhuma. O leão, que no início não deu muita importância, pois pensou que seria uma mania passageira, como ela já teria tido outras, arrependeu-se tarde demais. É que a leoa, quando finalmente deixou de comer carne, achou por bem incitar o marido a fazer o mesmo.
Como deveis saber, não há problema nenhum em haver alguém que nos tenta convencer de algo que nós não queremos. Dizemos-lhe que não e pronto, de mais a mais sendo leão. Que o leão se diz o rei de todos os animais e não tem de dar explicações a ninguém. Só que não foi bem assim que se passou. Quem lhe pedia era a sua esposa, e podeis ter a certeza de que o leão amava profundamente a sua rainha, pelo que não era capaz de lhe dizer que não.
E não lhe disse, o que se passou foi que pediu para lhe levarem a carne ao quarto à noite. O rei e a rainha dormiam em quartos separados, pois, como viviam num palácio com muitos quartos, podiam-se dar a esse luxo, e ainda assim ficavam muitos quartos vazios.
De dia, à hora da refeição, lá o rei metia alguma salada na boca como prova do seu amor, e à noite banqueteava-se com as delícias de que ele gostava.
Deveis estar a perguntar-vos o leão amará mesmo a sua leoa. Até lhe estava a mentir, não é verdade. Ainda não vos consigo explicar que mesmo assim, parecendo que lhe estava a mentir, o leão amava-a, e profundamente, como vos disse. Mas se souberdes esperar lendo esta história até ao fim tenho a certeza de que ireis compreender como é o amor do leão.
Deveis agora saber os nomes do leão e da leoa, pois eles são umas personagens muito importante na nossa história, ainda que nem mais nem menos do que as outras personagens, o lobo, o cordeiro, e todos os outros que vos irei apresentar. Assim, será melhor dizer-vos já algo acerca da sociedade sem classes:
Na sociedade sem classes todos os animais são importantes.
E com tudo isto quase que me esqueço de vos dizer o nome do leão e da leoa, ele era Gaspar e ela Felícia.
Regressemos agora ao fio da história. Porque resistiu o Gaspar a embarcar na viagem para a sociedade sem classe?
Há uma resposta curta e uma resposta longa. Vou-vos dizer primeiro a curta.
Porque nunca tinha vivido numa sociedade sem classes.
E agora a longa.
Porque o Gaspar sempre se habituou a viver com sendo o mais importante. Sempre que lhe dirigiam a palavra baixavam um pouco a cabeça e começavam dizendo: Vossa Majestade… Assim em letras maiúsculas e tudo. Até a Felícia o tratava por: Meu Senhor… Também em maiúsculas. E Gaspar perguntava-se se numa sociedade onde todos são importantes todos se tratarão por Vossa Majestade. É que ele não estava habituado a tratar ninguém assim, nem sequer conseguia imaginar como é que baixaria a cabeça. Temia que lhe caísse a longa cabeleira postiça encaracolada que usava.
O que venceu a sua hesitação foi Felícia, que tanto insistiu que até lhe disse que se fosse necessário iria sem ele. Por isso, mais uma vez, não foi capaz de dizer não à mulher e até alimentou a secreta esperança de que se calhar a sociedade sem classes seria como quando deixou de comer carne, que era uma coisa de dia e outra diferente de noite. Ainda assim só concedeu com uma condição:
– Sim embarcaria para a sociedade sem classes, mas teria de ser em classe executiva.
E olhem os meninos e as meninas que estão a seguir esta história que o leão não foi o único que decidiu partir para a sociedade sem classes apenas depois de muito pensar sobre o assunto.
Esse também foi o caso do lobo, de que desde já vos dou a conhecer o nome, o lobo Alferes. O lobo Alferes quando soube da viagem para a sociedade sem classes fartou-se de rir. Sempre que pensava nisso não conseguia deixar de rir. Dizia assim:
– Sociedade sem classes… utopias.
E depois ria, ria. Então acrescentava:
– E até vão de avião.
E era então que dobrava de tal forma o riso que acabava com ataques de espirros que faziam sair perdigotos por entre os dentes afiados e lábios grossos.
Como podeis ver, embora o lobo possa parecer um animal um pouco sisudo, e de olhar penetrante, quando se entusiasma com alguma coisa perde completamente as maneiras. Onde é que já se viu espirrar sem colocar o braço à frente, enchendo tudo à volta de perdigotos. Coisa feia mesmo. É por estas e por outras que raramente os lobos ficam bem nas histórias.
Se mofava assim tanto o lobo com a sociedade sem classes, o que o levou a também apanhar o avião? Para saberdes a resposta tenho de vos falar primeiro dos cordeiros.
Sim, e digo os cordeiros e não o cordeiro, pois se alguém alguma vez viu um cordeiro sozinho que o diga já, dado que é coisa bem rara. Andam os cordeiros uns atrás dos outros. É sempre assim que os vemos. Para onde vai um cordeiro vão logo os outros atrás.
Então, já estais a ver por que razão os cordeiros foram para a sociedade sem classes?
Fácil, não é. Pois houve um cordeiro que disse:
– Eu cá vou!
E então os outros seguiram-no.
Agora direis vós que é parecido com o que aconteceu com o leão que foi atrás da sua leoa.
Mais ou menos, muitas vezes há coisas que parecem iguais e que na realidade são diferentes.
O Gaspar foi para a sociedade sem classes porque amava a Felícia, já a Felícia foi, pois, deixou de comer carne. Agora os cordeiros foram apenas porque são cordeiros e nasceram a ir atrás uns dos outros.
Acho que na vossa cabeça está a surgir uma nova pergunta, que deve ser mais ou menos assim:
– Como é que os cordeiros seguiram o cordeiro que decidiu ir para a sociedade sem classes em vez irem atrás de um outro cordeiro qualquer que dissesse, por exemplo – Eu cá estou bem no meu curral, não preciso de nada mais na vida.
A resposta é que os cordeiros não seguem ao deus-dará. Todos os cordeiros que seguiram outros cordeiros ao deus-dará acabaram mal, caíram num desfiladeiro, ou foram para um deserto onde não encontraram água, e muitas outras coisas que fizeram com que não se ouvisse falar mais deles. Já os cordeiros que perceberam bem qual era o cordeiro que deviam seguir, iam sempre parar a bons prados, onde a erva é bem fresca, pelo que assim puderam ter muitos cordeirinhos que como eles sabiam bem como escolher o cordeiro líder.
Tenho então de vos falar desse cordeiro que levou os outros para a sociedade sem classes. O seu nome é Carlos. E deveis fixar esse nome, pois ele é muito importante na nossa história.
Sim, sei que já aprenderam, na sociedade sem classes todos os animais são importantes, não é só o cordeiro Carlos, ou o leão Gaspar. E era isso mesmo que o Carlos dizia.
Todos os animais são iguais, e não são só os cordeiros.
Já estou a imaginar que deve para haver por aí alguns meninos, daqueles que não gostam só de ouvir as histórias, que também não conseguem deixar de pensar enquanto as estão a ouvir, que devem estar a dizer:
– Mas então o Carlos não era diferente dos outros cordeiros?
É de facto uma boa pergunta que apenas pode ser respondida quando lerem toda a história. Mas posso-vos já adiantar.
No início da viagem para a sociedade sem classes nem todos os animais são iguais.
Então o que fazia o Carlos diferente dos outros cordeiros? O Carlos era como os meninos que fizeram a pergunta, não fica satisfeito só por ouvir a história, pensa também no que lá se diz. E depois de muito pensar, o cordeiro Carlos chegou a uma conclusão:
– Nem todas as histórias são verdadeiras.
E foi isso que ele disse aos outros cordeiros. Quando alguns tocavam os badalos para arregimentar o rebanho à sua volta e começam a discursar, dizendo que se estava era bem no curral, que o mundo era assim mesmo, e que tínhamos de aprender a viver com o que ele nos dava, logo o Carlos pedia para tomar a palavra, colocava as patas da frente no tronco de uma árvore para ser reconhecido, pelas longas barbas que desde cedo deixou crescer, e também para ser bem ouvido por todos, e dizia:
– Isso não tem de ser assim!
Explicava então o Carlos que houve tempos em que nem sequer havia currais, e os cordeiros eram livres, todo o leite que produziam era para eles. É verdade, dizia o Carlos, que naqueles tempos éramos mais facilmente vítimas dos lobos. Mas, e era então que deixava os que o ouviam muito emocionados, agora não somos vítimas dos lobos, mas somos explorados por aqueles que só nos querem pelo nosso leite e a nossa carne. E terminava com uma questão:
– Valerá a pena?
Era então que os cordeiros que apregoavam as virtudes do curral, também conhecidos pelos Curralistas, ripostavam:
– Ó Carlos, tu queres é atirar-nos aos lobos.
E então o Carlos respondia:
– Prevejo uma terra sem explorador nem explorado, em que não haverá diferenças entre lobos e cordeiros, é essa a ordem natural das coisas.
Ou seja, o que o Carlos queria dizer era que a sociedade sem classes é aquela em que os lobos e os cordeiros se alimentarão juntos em vez de se alimentarem uns à custa dos outros.
E cordeiro Carlos deixou tudo tão bem explicado que cada vez se dava menos ouvidos aos Curralistas, ficando estes a falar para os espantalhos que havia no campo para assustar os pássaros.
Reservaram então os cordeiros os bilhetes da viagem, e como eram muitos, e não eram muito abonados, lá conseguiram um preço de grupo em que a cada momento dois cordeiros podiam ir na classe turística indo os restantes no porão. A estratégia que conceberam, ideia do Carlos, claro, era que quando os do porão começassem a sentir muito frio, vinham passar um bocado na classe turística que era climatizada. A isto chamou ele de ter consciência de classe.
Quando os Curralistas foram contar o que se passava ao lobo Alferes ele perdeu logo a vontade de rir e disse perentório:
– Estas teorias não vão levar ninguém a bom porto.
Era capaz de apostar que estais muito admirados. Como é possível os cordeiros Curralistas irem falar com o lobo, então não são eles que acusam o Carlos de os querer atirar aos lobos?
Aqui está mais uma lição que ireis aprender nesta história:
Na sociedade com classes o amigo de hoje é o inimigo de amanhã e vice-versa.
Para perceberdes melhor deixai-me explicar-vos. Numa sociedade com classes cada classe tem os seus interesses, que muitas vezes são contraditórios com os da outra classe. Tomemos por exemplo a classe dos lobos e a classe dos cordeiros. A classe dos lobos tem interesse em comer cordeiros já a classe dos cordeiros tem interesse em não ser comida pelos lobos. Como vedes esses são interesses antagónicos. Por isso a classe dos cordeiros aceitou ir para o curral e até ser explorada pois dentro do curral tinha alguma proteção dos lobos. E o mundo tinha a sua ordem, até que o Carlos pensou que o problema era outro. Se os lobos e os cordeiros pertencessem à mesma classe não haveria necessidade de currais e acabaria a exploração. Foi o seu primeiro vislumbre da sociedade sem classes, uma sociedade em que lobos e cordeiros pertencessem à mesma classe.
Ora, aqui está a origem da aliança entre os cordeiros Curralistas e os lobos. Para contrariar as ideias do cordeiro Carlos, os cordeiros Curralistas precisavam que os lobos fossem mais lobos do que nunca, e que sempre que apanhassem um cordeiro fora do curral logo o comessem. Dessa forma poderiam voltar a ter razão nos seus discursos, a que se chama a razão do exemplo, e conseguir que a maioria dos cordeiros voltasse à causa Curralista, em vez das ideias visionárias do Carlos.
Creio que assim já compreendeis como numa sociedade sem classes interesses, por vezes, opostos passam a ser interesses comuns. Os lobos comerem mais cordeiros aumentava a necessidade do curral e logo a necessidade de classes, já os lobos comerem menos cordeiros até poderia levar a que deixassem de comer algum e assim não se distinguiria a classe dos cordeiros da classe dos lobos.
Mas regressemos ao que o lobo disse:
– Estas teorias não vão levar ninguém a bom porto.
Deveis estar a pensar o que quer o lobo dizer com isto. A verdade é que o Alferes tinha mau perder. Quer dizer não gostava de perder. Ou não se chamasse ele Alferes. Os lobos nisso são parecidos com as raposas. Nunca ouvistes a história em que a raposa diz acerca das uvas a que não consegue chegar:
– São verdes não prestam.
Se não sabeis perguntai aos vossos pais ou aos vossos avós.
A verdade é que o lobo tinha toda a sua vida organizada numa sociedade com cordeiros e agora que soube que eles iam partir ficou tão incrédulos que apenas conseguiu dizer isso mesmo:
– Teorias.
E teorias são coisas que parecem ser tão verdadeiras que nem sentimos necessidade de as encontrar na prática. Pelo menos foi esse o sentido que o Alferes lhe quis dar.
Teorias ou não, o Alferes após o primeiro impacto da surpresa que a notícia lhe trouxe lá ficou muito sisudo a pensar, a pensar, a ver se chegava a alguma conclusão. E aquela a que chegou foi muito prática, porque como ireis ver o lobo é um animal prático. Chegou lá dividindo o problema em partes, tirou uma conclusão para cada uma das delas e a conclusão final obteve-a juntando as pequenas conclusões obtidas anteriormente.
Na primeira parte perguntou-se o lobo Alferes:
– O que sou eu sem os cordeiros?
Para logo de seguida responder:
– Nada!
Na segunda perguntou-se de novo:
– O que há numa sociedade sem classes?
E, com o que sabe agora, pôde responder sem mais delongas:
– Cordeiros!
Pelo que a terceira parte do seu raciocínio já deveis estar mais ou menos a ver qual será:
– Comprar um bilhete para também ir para a sociedade sem classes.
Verdade que foi contra vontade. Mas rapidamente se animou, que até pensou como um Curralista:
– O mundo é assim mesmo, vou ter de me adaptar.
Como podem ver, a aliança entre o lobo e os Curralistas foi sol de pouca dura. Pois o lobo pensava mais longe, coisa que os cordeiros Curralistas nem por isso. E aqui está algo muito interessante, que deveis aprender pois poderá ser útil quando fordes grandes. Reparem que o lobo e os Curralistas ambos sabem que têm de se adaptar ao mundo, só que os lobos conseguem imaginar outro que não o atual, ainda que lhe chamem teorias, já os olhos dos cordeiros Curralistas alcançavam pouco mais do que as madeiras do curral, e, para além disso, só viam lobos.
Nisto temos de dar todo o mérito ao cordeiro Carlos, que tenho crescido num curral foi capaz de ver para além dele. Imaginou um mundo novo de que até o lobo teve de ir atrás, ainda que inicialmente dele tenha desdenhado.
E para verdes duas coisas – como o lobo é um animal prático e como na sociedade com classes os amigos de hoje são os inimigos de amanhã – sabeis o que fez o lobo assim que decidiu também ir para a sociedade sem classes? Não fazeis ideia? Pois bem, marcou uma reunião de estratégia com os cordeiros Curralistas.
O que é a estratégia, deveis estar a perguntar-vos. Bom, não vou responder, pois ireis aprender sozinhos, uma vez que esta história está cheia de estratégias. De facto, o lobo chamou à reunião de estratégia, mas ele marcou-a como uma manobra tática.
E agora estareis a perguntar-vos o que é a tática. Apenas vos vou dizer que a tática é uma estratégia de curto prazo e como às vezes é difícil distinguir o curto prazo do longo prazo, também por vezes é difícil distinguir a tática da estratégia.
Melhor contar mais um pouco da história. Então, o lobo combinou a reunião para um palheiro abandonado que tinha apenas uma entrada. Assim que todos os cordeiros Curralistas chegaram o lobo fechou a porta e anunciou a sua estratégia:
– Meus amigos cordeiros, eu também irei para a sociedade sem classes.
Os cordeiros Curralistas nem queriam acreditar no que ouviam, então não era essa a estratégia que tinham planeado, que alguns até ficaram tão irritados com o lobo que fizerem intenção de abandonar a reunião.
Foi então que o lobo se posicionou junto à porta e revelou a sua tática:
– Pois é, vou, e pretendo levar na barriga a maior quantidade possível de cordeiros.
Não imaginam a confusão que se gerou, era cordeiros a correr por todo o lado, a subir às paredes e o lobo a banquetear-se com cada um deles.
Foi assim que o movimento dos cordeiros Curralistas terminou na barriga do lobo.
Como vedes, a tática do lobo é de curto prazo, fazer a viagem de barriga cheia, e quando chegar à sociedade sem classes já terá digerido do último dos Curralistas. Já a estratégia da aliança entre o lobo e os Curralistas era de longo prazo, mesmo para todo o sempre, o lobo fazia de lobo e o cordeiro fazia de cordeiro, como sempre tinha sido.
Mas também se pode aqui ver como nem sempre é fácil distinguir estratégia de tática, pois o que parecia ser para sempre deixou de o ser, assim que o lobo mudou de estratégia.
Uma última coisa, o lobo comprou um bilhete em classe turística, não que não pudesse ir na executiva, pois só em peles de cordeiro tinha ele acumulado uma fortuna. A razão é que, pragmático como era, sentia-se melhor indo com os cordeiros debaixo de olho, especialmente o que se dava pelo nome de Carlos, sabe-se lá que ideias lhe passariam pela cabeça, e o lobo queria estar próximo para não perder tempo a se adaptar de novo, se fosse caso disso.
Usou, no entanto, algum do seu dinheiro para comprar o bilhete com lugar marcado. Escolheu duas filas atrás do lugar dos cordeiros, um assento que ficava mesmo junto da entrada do porão, onde iam os restantes cordeiros.
Devo agora falar-vos dos bovinos que embarcaram. Foram dois. Pode até ser que já tenham ouvido falar deles. É um casal de vacas, a Borisca e a Laranja. E digo um casal mesmo. Até têm um filho que é o burro Castanho.
Embora vivessem numa aldeia isolada, onde pouco mais acontece do que trabalhar de sol a sol, estas duas vacas sempre pensaram pela sua própria cabeça. Especialmente a Borisca. E o que levava a Borisca a pensar. Foram, como quase sempre acontece, as circunstâncias. E que circunstâncias são essas, perguntarão vocês. A resposta rápida é:
– Quanto mais as nossas circunstâncias são diferentes das circunstâncias dos outros mais somos obrigados a pensar acerca das nossas próprias circunstâncias.
Sim, é verdade, não foi uma resposta tão rápida como vocês estariam à espera, até eu estou um pouco surpreendido, mas não consegui melhor. Tem vinte e uma palavras e repete três vezes a palavra circunstâncias. Vou assim dar-vos uma resposta mais pormenorizada, explicando o que significa cada uma das vezes que a palavra circunstâncias é utilizada.
Primeiro, são as nossas circunstâncias. Neste caso as circunstâncias do casal de vacas Borisca e Laranja, que têm como filho o burro Castanho, sendo que o Castanho chama a Borisca de pai e a Laranja de mãe. Eram essas as suas circunstâncias.
Depois, em segundo lugar, vêm as circunstâncias dos outros. E as circunstâncias dos outros eram diferentes das do casal Borisca e Laranja. Pelo menos lá na aldeia onde elas viviam, que outras no mundo não conheciam. Ou seja, a Borisca e a Laranja conheciam apenas as suas circunstâncias e as dos outros lá na aldeia, e nelas não havia nenhum outro casal de vacas, muito menos um casal de vacas com um filho burro.
Finalmente, vem a terceira aparição da palavra circunstâncias, que são as próprias circunstâncias, as circunstâncias que levam a pensar. O que é normal, pois sempre que vemos uma coisa diferente de todas as outras ficamos a pensar se haverá alguma razão para não ser igual. Não é? As vacas pensavam sobre a diferença entre as suas circunstâncias e as circunstâncias dos outros, a que chamavam as próprias circunstâncias.
E o que é que as vacas Borisca e Laranja pensavam? Pensavam se haveria alguma razão, certa ou errada, que fazia com que as suas circunstâncias fossem diferentes das dos outros. E pensavam de maneira diferente. A Laranja tinha mais tendência a pensava que se calhar as circunstâncias poderiam estar erradas. E tanto pensava nisso que várias vezes disse à Borisca para deixar de ser seu marido e assim as suas circunstâncias ficarem iguais às dos outros. Já a vaca Borisca tinha a certeza de uma coisa, as suas circunstâncias não estavam erradas, se não fosse marido da Laranja todo o seu mundo se despedaçaria com uma grande tristeza. Ou seja, a vaca Borisca sabia do fundo do seu coração que estava certa, que o seu amor pela Laranja era um amor verdadeiro. Por isso, em vez de pensar só um pouco para concluir que devia ser como os outros, como fez a Laranja, ser como os outros era impensável para a Borisca, e isso levava-a a pensar muito, para perceber como pode ser um mundo diferente.
Verdade seja dita que a Borisca não chegou lá sozinha. Tinha pensado, e pensado, mas não encontrava uma solução. E isso acontece muitas vezes. Pensamos muito e não chegamos a lado nenhum, mas o bichinho do pensar fica cá dentro, à espera de uma faísca que faça com que tudo de repente tenha sentido. Até há uma palavra para isso: heureca.
Quase sempre a faísca da heureca vem de fora de nós. Sem nós estarmos à espera. E a heureca da Borisca ocorreu assim. Estava ela um dia a pastar no Sobreiral quando dois rapazes novos, daqueles guedelhudos que vêm de Lisboa durante o mês de agosto, se sentaram debaixo de uma oliveira, sim neste Sobreiral há oliveiras, com uma guitarra e começaram a cantar canções onde se falava de uma sociedade sem classes, onde todos poderiam ser iguais.
Esta foi a faísca da Borina. Tudo o que tinha pensado antes passou a fazer sentido. Numa sociedade sem classes, pensou ela, também não há a classe do homem separada da classe da mulher. Essa seria uma sociedade em que as únicas circunstâncias que interessam seriam as nossas circunstâncias e nessa sociedade cada um seria livre de escolher as suas.
Então, quando soube que se estava a preparar uma viagem para a sociedade sem classes, logo convenceu a Laranja, que não foi capaz de dizer que não, dado o amor que a Borisca lhe tinha, e fugiram do palheiro numa noite, muito escura, para embarcar para a sociedade sem classes.
Agora aqui estão as duas, nos assentos junto às asas, pois como são animais muito pesados este é o lugar mais conveniente. E vão muito amorosas, com o casco da Borisca a agarrar o casco da Laranja, que a Laranja está com algum medo de voar.
Sabem quem está sentado no banco atrás da Borisca e da Laranja? Ora então, está o burro Castanho com um sorriso de orelha, óculos escuros na testa, a deliciar-se com um sumo de tomate com pimenta e sal e uma rodela de limão enfiada na borda do copo.
Mas que raio estará este burro a fazer aqui? Sabemos de outras histórias que o burro Castanho é muito observador, mas nunca se lhe tinha notado qualquer interesse por causas sociais, muito menos com a sociedade sem classes.
E olhem que assim que ele entrou no avião ficou logo debaixo de olho do cordeiro Carlos, que talvez seja quem tem uma ideia mais bem pensada do que deve ser a sociedade sem classes.
Terá até o Carlos comentado a um outro cordeiro que anda sempre com ele, que foi o primeiro a prestar atenção ao que ele diz e que desde o primeiro momento o apoia em tudo o que faz. Chama-se este cordeiro Englês. É um nome esquisito, mas é de facto o nome dele.
O Englês é tão amigo do Carlos que muitas vezes guardava para ele as melhores partes do prado, aquelas em que a erva é tão abundante e boa que em pouco tempo se fica de barriga cheia. Assim, podia o Carlos passar o resto do tempo a pensar nas suas coisas. Como devem saber, não é muito fácil pensar e comer ao mesmo tempo, sai tudo muito baralhado, as ideias vêm muito mastigadas, em vez de límpidas, como deve ser, e a comida fica mal triturada pois até acontece engolir sem pensar, o que faz mal ao estômago.
Regressemos ao que o Carlos disse ao Englês:
– O que vem para aqui este burro fazer, de óculos escuros na testa, parece que está a apanhar boleia para uma estância turística.
É este o momento para realçar algo que deveis aprender acerca da sociedade sem classes:
Não obstante a importância e seriedade da sociedade sem classes, há alguns que embarcam na desportiva.
Pois é, o burro Castanho veio um pouco na desportiva. Ele próprio não o esconde. É verdade que os pais, as vacas Borisca e Laranja, vieram com as suas convicções, até mais a Borisca, como já vimos. Mas o burro Castanho já é crescido e independente, não depende dos pais, pode ter a sua própria vida. Porque veio então?
Ele próprio deu a resposta:
– Pareceu-lme gira a ideia e fiquei com muita curiosidade de ver como é a sociedade sem classes.
Se calhar, se houvesse outra coisa gira a acontecer o burro até poderia ter ido ver como era essa outra coisa, mas pronto, calhou ser a sociedade sem classes.
Foi por isso que quando o Carlos disse o que disse ao Englês, ouviu um castor de óculos, ar inteligente e muito simpático, que estava sentado na cadeira ao lado, junto ao corredor, lhe dizer:
– É uma Maria que vai com as outras.
O que quer dizer o castor Miguel, sim é esse o seu nome, com uma Maria vai com as outras? Fui ao dicionário e diz assim: Pessoa sem vontade própria, que faz o que vê fazer e se deixa influenciar facilmente. Quer então dizer que o castor pensa que o burro Castanho não tem vontade própria, faz o que vê os outros fazer e acredita em tudo que lhe dizem.
E olhem, por muito ofensivo que fosse, não foi o burro Castanho que ficou chateado pelo que disse o castor, até porque não ouviu, ou então ouviu e estava tão entretido a beber o seu sumo de tomate com pimenta e sal e uma rodela de limão enfiada na borda do copo que não ligou nenhuma, quem pareceu não gostar do que ouviu foi o Carlos. Sim, o Carlos, a quem Miguel se dirigiu com tanta simpatia. O cordeiro olhou de lado para o castor e perguntou com maus modos:
– Que quer dizer com isso?
O Miguel ficou um pouco incomodado com a pergunta áspera do Carlos. Já o tinha ouvido falar e admirava muito as suas ideias, embora discordasse numa ou duas coisas, agora não esperava que ele discordasse de algo que lhe parecia tão evidente acerca do burro. Foi então que pensou, como vos disse ele é muito inteligente, pensou que se calhar o Carlos julgou que se estava a referir ao facto de os cordeiros andaram atrás uns dos outros.
Por isso, resolveu amenizar a conversa e dizer:
– Pois ele também será capaz de encontrar o seu caminho sem ser necessário que alguém lhe o indique.
O que deixou o cordeiro Carlos ainda mais irritado. Para percebermos porquê temos de saber qual a razão pela qual o castor resolveu ir para a sociedade sem classes.
Quando o Miguel ouviu falar da sociedade sem classes, foi por um outro castor que lhe falou de um cordeiro que parecia ter enlouquecido e começado a dizer que os currais oprimiam os cordeiros. Como era muito curioso, o castor procurou saber onde pastava tal cordeiro. Foi assim que começou a ouvi-lo quando ele por acaso discursava aos outros cordeiros junto a uma ribeira.
Sabem que depois de beber um pouco de água discursa-se melhor. A água aclara a voz e ajuda a absorver as ideias. Por isso o Carlos muito frequentemente escolhia o momento em que iam beber água às ribeiras para comunicar o que ia nos seus pensamentos.
O castor achou graça ao que ouviu. Também é verdade que os castores formam comunidades onde todos se ajudam uns aos outros, onde ninguém dá ordens. E disso gostou o Miguel. Já de uma coisa discordava do Carlos. É que o Carlos dizia que nem todos estavam preparados para a sociedade sem classes e por isso devia haver alguém que conduzisse os outros para lá chegar. Nisso o castor discordava. A sua experiência dizia-lhe que cada um lá chegaria, que com cooperação e em comunidade todos eram capazes.
Não sei se estais a perceber. O Carlos é como aqueles pais que estão sempre a dizer como devem as coisas ser feitas para serem bem feitas, já o Miguel é como os que não ralham e parecem não se importar quando os meninos fazem asneiras pois acham que vão acabar por aprender.
Então se já percebestes a diferença, agora é fácil perceber a razão pela qual o Carlos ficou chateado. Se vos perguntar quais os pais que gostareis mais de ter, quais responderiam? Tenho a certeza de que a maioria de vós achariam mais graça ao método do Miguel.
Ora aí está. O Carlos ficou com medo de que os cordeiros que com ele vieram também começassem a gostar mais da sociedade sem classes do Miguel. Por isso arranjou um estratagema. Quando o castor teve de ir à casa de banho pediu a um dos cordeiros que estava no porão para se sentar no seu lugar. Depois de regressar, o Miguel, que como vos disse era muito simpático, achou que seria indelicado dizer alguma coisa e ficou à espera de que o cordeiro se levantasse. Coisa que ele não fez, pois foi isso que o Carlos lhe pediu para fazer.
Ao fim de um bom bocado, diz o Carlos ao castor com um ar autoritário e gozão:
– Porque não se vai sentar ao pé do burro, com certeza que consegue fazer com que ele deixe de ser uma Maria que vai com as outras.
O Miguel, que não era de se zangar, lá foi sentar-se ao pé do burro Castanho que logo engraçou com o castor simpático inteligente de óculos redondos. Pensou, parece ser conversador e de certeza que vou aprender muitas coisas, e mais satisfeito ficou de ter decidido viajar para a sociedade sem classes.
Já regressaremos às conversas instrutivas entre o castor e o burro, mas agora de uma outra conversa vos tenho de dar conta.
Como vos disse as vacas Borisca e Laranja sentaram-se nos assentos junto à asa, pois é onde se devem ficar os animais mais pesados. E sabem quem se sentou no assento do outro lado do corredor, junto da Borisca? Nem mais nem menos do que um elefante.
A Borisca não estava em si de contente. Mesmo que a sociedade sem classes não fosse exatamente como tinha imaginado, para ele a viagem já tinha valido a pena. Um elefante. Foi o seu sonho de toda a vida conhecer um elefante. O animal mais forte e trabalhador de que tinha ouvido falar. E agora ali estava um, muito parecido ao que o tinha imaginado, cinzento e tudo.
Não se contendo, interpelou-o sem pensar, dizendo:
– Isto é uma carga de trabalhos.
Como podeis ver, é uma forma um pouco estranha de começar a falar com alguém que está ao nosso lado num avião. Estamos todos sentados, ninguém está a trabalhar, e carga se houver alguma é a do avião.
Agora há uma coisa que deveis saber acerca do Alberto, era assim que se chamava o elefante, tinha um coração enorme o que fazia dele um animal muito bondadoso. E quando digo grande, digo grande mesmo, o coração tem perto de 20 quilos, agora imaginai o tamanho. Ademais, porque é que pensais que ele tem aquela tromba enorme? É para abraçar muito forte!
Como estais a ver, os elefantes são animais bons e o elefante Alberto é um dos elefantes mais bondadosos do mundo. Para além disso, o Alberto já tinha uma certa idade, pelo que tinha vivido muito e não sentia necessidade de andar a correr de um lado para o outro. O que fazia com que procurasse ter tempo para os outros. Por isso, olhou com uma enorme ternura, só possível nos seus olhos gigantes de elefante, sorriu simpático para a Borisca e disse:
– É assim mesmo.
A Borisca ficou com o coração a bater tão forte que apertou com força o casco da Laranja e, pensando que tinha encontrado tema de conversa, continuou:
– Com que então consegue carregar 20 dornas cheiinhas de uvas.
O que vale à Borisca é que o Alberto é a bondade das bondades, pois ele não fazia a mínima ideia do que eram dornas, ainda que uvas já tivesse comido, e ainda assim respondeu:
– Não sei se 20 não será demais, para a minha idade. Olhe eu sou o Alberto, o elefante.
Alberto é mesmo nome de elefante, pensou a Borisca, e as lágrimas quase lhe viram aos olhos:
– Prazer, eu sou a vaca Borisca e esta é a minha esposa Laranja.
O Alberto olhou com imensa ternura para aquele simpático casal e pode imediatamente perceber da sua felicidade, o que o levou a pensar na sua falecida, a Alberta, já lá vai uns anos, uma mulher de muito boa memória. E olhem que os elefantes têm uma grande memória, pelo que se é boa então é mesmo verdade.
Retorcendo um pouco a tromba com a emoção do pensamento disse:
– Também a minha Alberta teria adorado fazer esta viagem.
– Não pôde vir? – Pergunta a Borisca.
– Não pôde não. Sabe, eu sou viúvo. – Respondeu com um sorriso.
– Sinto muito. – Disseram ao mesmo tempo a Borisca e a Laranja.
– Obrigado, já lá vão alguns anos que ela partiu.
– Então o que o traz à sociedade sem classes. – Perguntou a Laranja, que ainda andava à procura de uma justificação para ter trocado o conforto do palheiro e o pasto garantido por esta viagem para um destino desconhecido.
O elefante Alberto pensou um pouco e depois disse:
– A memória, é a memória que me traz aqui. Sabem, eu cresci num tempo em que erámos todos felizes. Éramos todos iguais. Também creio que a juventude é um pouco assim.
No assento detrás, atentos à conversa, o castor Miguel e o burro Castanho concordaram com a cabeça. E concordaram por razões opostas. O burro pois nunca mais esqueceu a sua vida estouvada de burreco, que eram só brincadeiras sem eira nem beira. Para ele, se afinal isto for a sociedade sem classes então apanhou o avião certo. Já o castor é porque acha que todos os animais nasceram naturalmente bons. O que nos leva a uma outra coisa que deveis saber sobre a sociedade sem classes:
Para alguns, a sociedade sem classes já existia antes de existir, os animais é que deram cabo dela.
O que quer isto dizer? Quer dizer que nascemos bons, mas são as circunstâncias que fazem de nós maus. Por isso, para alguns, para termos uma sociedade sem classes basta alterar essas circunstâncias. Era assim que pensava o castor Miguel e de alguma forma também o elefante Alberto. Já do burro Castanho não se podia dizer que pensasse mesmo assim, ou pelo menos não pensava muito, o que adoraria era ser burreco toda a vida.
Quem parece também ter vindo em paz é a serpente. Sentada num dos lugares da frente do avião, enrolada sobre si mesma e com a cabeça a repousar lá no cimo. Era uma linda serpente negra de barriga vermelha que parecia meditar.
Deveis-vos perguntar o que faz uma serpente na sociedade sem classes. A verdade é que a serpente veio por ter sido convocada, se bem vos recordais de como começa esta história: mas pó será a comida da serpente. Estava na sua vida normal, sem fazer mal a ninguém, a não ser a comer uma ou outra rã, que todos nós nos temos de alimentar, quando recebeu um bilhete para a sociedade sem classes.
Muito surpreendida ficou a serpente Siza, pois não fazia a mínima ideia de quem é que lhe poderia ter enviado o bilhete. Ademais, a serpente não era muito sociável, não por culpa dela, que é um animal que tenta passar despercebido e não incomodar ninguém, mas por uma certa mania que se criou de ter medo de serpentes.
Com isso vivia bem a serpente Siza. Até tinha aproveitado, já que não tinha uma vida social, para se dedicar à meditação e ao conhecimento interior em vez de passar o tempo na conversa acerca da vida deste e daquele, como muitos animais fazem.
Não sei se já ouvistes falar da meditação. Talvez, se calhar à vossa mãe ou ao vosso pai. Já do conhecimento interior duvido muito terdes ouvido falar, pois na vossa idade é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém. Isto do conhecimento interior vem mais tarde, quando já não nos conseguimos entreter a brincar.
Como meditava então a serpente Siza? Exatamente como está agora sentada na cadeira do avião. Até parece que está adormecida. Mas não está não. Está a sentir o corpo todo. Por vezes até agita o guizo que tem na cauda por forma a se concentrar mais profundamente.
E o que é isto do conhecimento interior? No caso da nossa serpente, como passa muito tempo concentrada no corpo, sabe exatamente com está cada órgão. Conta cada batimento do coração, sente o fígado a retirar as toxinas do sangue, até consegue sentir o sabor do sapo a decompor-se no estômago. E é só para dar três exemplos, pois a Siza consegue sentir ao mesmo tempo cada parte do seu corpo e não ficar nada baralhada.
Olhem que não é fácil, imaginai que estais a ver televisão, a jogar na internet e a estudar matemática ao mesmo tempo. Achais que conseguis. Se calhar dizeis aos vossos pais que sim, mas aqui que ninguém nos ouve, sabeis bem que não é verdade. Já a serpente consegue pois não está a correr atrás de nenhumas das coisas que lhe acontecem na vida, que para vós tendes o filme para ver, o jogo para jogar e os trabalhos de casa para terminar.
A isto se chama vida interior. É por isso que as pessoas que têm muita vida interior parece que não a têm quando observadas do exterior, pois não têm nada para alcançar. Mas podeis ter a certeza de que a vida da serpente é bem preenchida. É como estar a olhar para um ecrã onde estão a acontecer várias coisas ao mesmo tempo e essas coisas estão a acontecer dentro do nosso corpo. A isso se chama plenitude, que como deveis saber quer dizer totalidade, a totalidade do nosso corpo. É isso a plenitude.
Eu também não sei quem é que comprou o bilhete à serpente, mas parece-me que foi alguém que acha que na sociedade sem classes deve haver alguma plenitude. Por isso há algo mais que deveis aprender sobre este tipo de organização social:
Na sociedade sem classes chega-se a uma plenitude, um estado completo que é o ponto final de uma caminhada.
Que quer isto dizer, deveis estar a perguntar-vos. A resposta é simples. E vai lá com três perguntas apenas. A primeira é:
– Quem está em plenitude?
E a resposta é:
– A serpente.
A segunda pergunta é:
– Como é a vida da serpente?
E a resposta é:
– Calma, sem exaltações, nem correrias.
E porque é que a serpente não tem exaltações nem correrias?
– Porque o seu corpo está em completa harmonia, no coração não está desavindo do fígado, nem este do estômago. É um final feliz.
Logo, deixai-me concluir, a sociedade sem classes é o fim da história. E é este que vou tentar seja o meu compromisso, quando chegarmos à sociedade sem classes a história acaba. Que história pode haver se o lobo não quiser comer o cordeiro?
Agora vou-vos contar algo que vos vai surpreender. Sabem quem é que ficou entusiasmada com a presença da serpente no avião? Pois é, foi a Felícia, a leoa. A nossa leoa ficou comovida com a paz da serpente, não resistindo a lhe fazer uma pergunta, ia a serpente dois assentos atrás do casal de leões:
– Desculpe incomodá-la, mas como consegue alcançar essa plenitude?
A serpente colocou a sua língua bifurcada de fora para sentir o cheiro de quem falava com ela, pois com muita reticência abandonava os seus estados transcendentais. Quando trouxe a língua de volta à boca para analisar os cheiros recolhidos identificou quem falava com ela como sendo uma leoa que já não comia carne há vários anos. Perguntou-lhe de olhos fechados:
– É feliz por não comer carne?
Felícia ficou tão perturbada com a pergunta que até se mexeu no assento:
– Almejo a felicidade e acho que estou no caminho.
Respondeu ela de uma forma que tenho de explicar devagar.
Então é assim. Há várias formas de responder às perguntas. Algumas vezes, quando respondemos, fazemo-lo de forma tão afirmativa e direta que nem nós temos dúvidas acerca da resposta dada, nem quem nos ouve consegue tem coragem para duvidar do que dissemos. Isto faz com que por vezes até damos respostas erradas que parecem verdade. Outras vezes, hesitamos tanto a dar a resposta que até parece que está errada, embora possa estar certa. Tenho a certeza de que entendeis bem o que estou a falar, pois já vos terá acontecido ambas as situações quando respondeis às perguntas dos vossos professores.
No entanto não foi de nenhuma destas formas a resposta de Felícia. Começou hesitando e terminou afirmativamente. Foi então assim:
– (hesitante) Almejo a felicidade e…
Depois passou para:
– (afirmativa) acho que estou no caminho.
A serpente, que é um bicho ao qual nada escapa, dado o seu espírito meditativo, percebeu bem o que ia pelo coração de Felícia e, como também era muito verdadeira, disse-lhe:
– A felicidade é um estado não é um caminho.
O leão Gaspar estava boquiaberto. Sempre lhe tinham falado mal das serpentes, que são umas venenosas, e por isso nunca tinha admitido nenhuma na sua corte. Via agora que é um bicho muito sábio. Ela conseguiu dizer à sua mulher o que a ele nunca lhe tinha ocorrido. Se tivesse sabido teria tido uma serpente como conselheira de estado.
– Mas deve haver um caminho que leva ao estado da felicidade.
Replica Felícia libertando agora mais intensamente o cheiro dos leões que não comem carne.
A serpente não respondeu imediatamente. Não sentia essa necessidade. Segundo ela, quem tem preocupação em responder logo às perguntas são aqueles que acham que as respostas os levam do estado atual para um melhor estado. Ora, se o estado da serpente é a felicidade para quê responder. Finalmente lá disse, e passou tanto tempo que até não parecia ser resposta a coisa alguma:
– Eu não penso muito nisso.
Então deitou de novo de fora a língua pontiaguda, como de uma despedida se tratasse e colocou a cabeça sobre o corpo fechando os olhos, não sem antes dizer:
– Há aqueles para quem toda vida é apenas uma viagem, uma correria.
Há então algo que, na opinião da serpente, deve ser dito acerca da sociedade sem classes:
Há na viagem para a sociedade sem classes uma tensão entre a caminhada e a chegada.
Sei que não é fácil entender alguns dos ditos sobre a sociedade sem classes. Também se fosse não seria necessário escrever esta história. Quem é que quer ouvir histórias em que quando terminam sabemos o mesmo que sabíamos antes de terem começado.
E olhem que este formulado é mesmo difícil de explicar, como todas as tensões. E por vezes, como não temos de saber a solução de tudo, só perceber o problema já é muito bom. Há quem lhes chame paradoxos. Já ouvistes falar de paradoxos? Paradoxos surgem em frases que conseguem dizer simultaneamente uma coisa e o seu contrário.
No nosso caso entre o estado da caminhada e o estado da chegada. Reparem, na ansiedade de todos estes passageiros para chegar à plenitude. O que nos diz a serpente?
– Que ao nos envolvermos na caminhada entramos num estado completamente contrário à chegada.
Isto, faz da serpente o passageiro mais improvável para a sociedade sem classes. Então, não é? Quem é que empreende uma viagem para um local onde já está? Por isso a serpente apenas veio por ter sido convocada e até não lhe é prometido nada de especial: apenas o pó. Então porque estará aqui? Talvez para explicar o paradoxo. Conhecemos melhor uma viagem se um dos passageiros não está demasiado interessado nela. Já ouvistes falar do Velho do Restelo?
O carneiro Carlos está em completo desacordo com a presença da Siza. Considera mesmo que, conjuntamente com o castor Miguel, a serpente Siza é um dos piores entraves à caminhada para a sociedade sem classes. Uma coisa ficamos já a saber. Não foi o Carlos que convidou a serpente. Quem terá sido?
No assento ao lado do casal de leões, também em classe executiva, vai uma águia careca americana, que se chama Samcia. Com a sua cabeça altiva e sobrancelhas carregadas é uma águia muito observadora. Vocês sabem que as águias conseguem virar a cabeça 180 graus. Ou seja, conseguem olhar para trás sem mover o tronco.
Logo que se sentou passou o tempo a perscrutar o que se passava no avião. Muito em particular o cordeiro Carlos, que ia bem lá atrás. Além disso, a Samcia tinha uma visão muito aguçada. Conseguia perceber o mais ligeiro pestanejar de um cordeiro no fundo do avião, pelo que já tinha tomado nota das discordâncias entre o cordeiro Carlos e o castor Miguel, tendo sussurrado para consigo:
– Interessante, muito interessante.
Também seguiu com algum interesse a conversa entre a Felícia e a Siza, mas nada disse, foi o Gaspar, que imaginando alguma realeza na coroa de penas brancas que enfeitava o pescoço da Samcia, resolveu-lhe perguntar a opinião sobre a serpente Siza. Disse assim por extenso, uma vez que o leão estava habituado a conversas formais:
– Permita-me perguntar-lhe se já alguma vez teve alguma experiência de governança, e se sim, qual a sua opinião acerca da presença de serpentes nos órgãos de governo?
A águia Samcia olhou imponente para o leão, até com um pouco de desdém, e respondeu:
– Já vi com e já vi sem. Quanto a esta, que me parece semelhante a serpentes que há na Califórnia, embora possam ser úteis em certas situações, não aconselho a sua participação no governo, uma vez que têm muita dificuldade em se adaptarem à realpolitik.
E enquanto debitou cada uma destas palavras percorreu de cima a baixo o Gaspar com os seus pequenos olhos afilados.
A águia, que estudou ciência política em Arvoráde, uma das maiores árvores do seu país, usa palavras difíceis, que tenho de vos explicar. Neste caso: realpolitik.
Não vai ser difícil, pois vou explicar com um exemplo que vocês conhecem. Quando o lobo trocou de estratégia e ainda lhe juntou uma tática em que comeu os cordeiros que eram seus aliados, deu um bom exemplo de realpolitik. O que aconteceu? O lobo tem um só objetivo e a ele dedica toda a sua atenção: comer cordeiros. Conforme as circunstâncias o lobo adapta-se para atingir esse objetivo. Por isso, se alguém acusar o lobo de ser um hipócrita é porque não sabe o significado de realpolitik.
Se calhar estais agora a questionar-se sobre o que é um hipócrita. Nada melhor do que consultar um dicionário: pessoa que finge ter determinados princípios, ideias, opiniões ou sentimentos.
Estais confusos? Então o lobo não é um hipócrita, não fingiu que era aliado dos Curralistas quando de facto não o era? Não, pois enquanto foi aliado dos Curralistas o lobo estava sinceramente empenhado nessa aliança, o que se alterou foram as circunstâncias. Um hipócrita é sempre hipócrita independentemente das circunstâncias, já quem segue a realpolitik apenas é hipócrita quando mudam as circunstâncias.
O leão Gaspar estava sem resposta, olhando para a águia e pensando:
– Se calhar o que eu necessitaria era de ter uma águia como esta como conselheira.
Falando sem quase mexer o bico, a Samcia dirige-se ao Gaspar, afunilando tanto os olhos que estes pareciam cobertos pelas enormes sobrancelhas:
– Desculpe, mas não resisto a perguntar-lhe, posso saber a razão pela qual abandona o seu reino pela sociedade sem classes?
Temendo pela resposta, a leoa Felícia interrompe perguntando à águia:
– O que ao traz a si nesta viagem?
Sem deixar de fitar o leão Gaspar a águia responde:
– Eu sou, principalmente, uma estudiosa, uma académica, interesso-me por estes assuntos. E mais não disse.
Como vedes há pelo menos dois estudiosos neste voo, o cordeiro Carlos e a águia Samcia, se não mesmo três, pois também o castor Miguel pensa a partir do que os outros pensaram, recordem como ele se esforçou para ouvir o Carlos. Só por não ter estudos é que a vaca Borisca não é uma académica, pois como vimos também ela gosta de pensar pela própria cabeça, o que faz com que os seus pensamentos sejam mais simples, ainda que não menos interessantes.
Quem estava convencida que também pensava pela própria cabeça era a formiga Eloísa, que era um animal de fortes convicções. A Eloísa ia sentada atrás do casal de leões, perdida na cadeira gigantesca, contudo, no que lhe faltava de volume, a formiga Eloísa procurava encher o assento com aquilo que sentia possuir em abundância: alma.
De certeza que já ouvistes falar da alma e por isso não preciso de explicar o que é, até porque temo que o que a alma é varia conforme a pessoa a quem perguntamos. Todavia, há algo que deveis saber, pois é uma evidência facilmente demonstrável, são os mais abastados que têm mais alma. Se perguntardes a um pobre o que tem, e se a resposta for de satisfação, o pobre dirá que tem almoço ou tem jantar, ou até mesmo um local para dormir. Já um rico vos dirá que tem alma. Até vos dirá que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. O que ele quer dizer é que se não nos tivermos de preocupar com o almoço nem com o jantar, nem onde pernoitar, tudo vale a pena, pois podemos desfrutar de tudo sem preocupações. Podemos olhar para a beleza do céu sem ser incomodado com pensamentos sobre como encher a barriga ou nos abrigarmos.
Ia então a formiga Eloísa muito atenta ao que se passava à sua volta, seguindo a conversa entre os passageiros que considerava terem alma como ela, não como aqueles cordeiros que passaram com muito mau aspeto e malcheirosos, liderados por um cordeiro barbudo de ar quizilento, e o esquisito casal de vacas de mão dada.
Estava a formiga a seguir a conversa, especialmente agradada com a águia, que lhe pareceu, pela altiva cabeça, um animal que se dava ao respeito, que resolveu intervir projetando fortemente a sua voz para além do assento:
– A realpolitik é um jogo de soma-zero.
A águia Samcia retirou os olhos de Gaspar e fixou-os na pequena formiga, esboçando um sorriso satisfeito, mas nada dizendo, o que deixou a Eloísa um pouco insegura sobre o que tinha dito. Por um lado, estava certa de que a realpolitik era um jogo de soma-zero, pois fazia parte do que tinha estudado para embarcar para a sociedade sem classes. No entanto, a ausência de resposta por parte da águia fez surgir algumas das suas vulnerabilidades. Considerava-se muito trabalhadora, mas não deixava de ser uma formiga, e isto do tamanho até na força das ideias conta.
Creio que agora tenho de vos explicar três coisas. Primeiro o que é um jogo de soma-zero, depois o sorriso satisfeito da águia e, finalmente, como é que o tamanho dá força às ideias.
Um jogo de soma-zero é aquele em que não podem ganhar os dois participantes, um ganha e o outro perde. Mas não são os jogos todos assim, perguntais vós. Pois é, por exemplo quando se joga à bola é para uns ganharem e outros perderem. O que nos leva à questão de saber qual a razão pela qual a Eloísa foi procurar um nome tão complicado para algo tão simples. Provavelmente foi para procurar impressionar a águia Samcia, que nada satisfaz mais o pequeno do que o beneplácito do grande.
E aqui chegamos ao sorriso satisfeito da águia. É que nada agrada mais ao grande do que sentir o respeito do pequeno. E mais vos digo, o respeito é muito útil e a Samcia sabia bem disso, procurando granjear todo o respeito, que a águia até costumava dizer:
– O respeito é um asset.
E diz assim mesmo em inglês e tudo. Que é como quem diz, o respeito é uma coisa valiosa.
Por fim, tendes de saber como é que o tamanho dá força às ideias. Já com certeza ouvistes um pequeno a dizer algo muito certo a quem ninguém dá ouvidos e depois chega um grande e diz algo com que todos concordam por muito errado que esteja. É isso mesmo. Se quereis que as vossas ideias vencem primeiro deveis garantir que sereis ouvidos. Por isso a águia fala sempre com a cabeça bem esticada e o cordeiro Carlos se põe em pé junto a uma árvore para discursar.
E o que tem isto a ver com a sociedade sem classes. A verdade é que tem bem pouco, pois:
Na sociedade sem classes o respeito, assim como a razão, deve ser independente do tamanho.
Então, direis vós, isto é mais uma tensão, um paradoxo, a águia Samcia não devia vir para a sociedade sem classes. Confesso-vos que eu próprio tenho as minhas dúvidas acerca das motivações da águia. Agora não podemos deixar de notar que ela é uma observadora, pode ser que, como ela disse, esteja apenas aprender o que é a sociedade sem classes, como vós que ouvis esta história e o burro Castanho que veio na desportiva. Mas terá a Samcia vindo na desportiva?
E a formiga Eloísa veio também na desportiva? Pela forma como quis impressionar a águia temo bem que não. Provavelmente a formiga quer apenas fazer parte. Não devemos esquecer que as formigas são animais com um elevado sentido de missão para com o seu formigueiro, sem sequer pensarem em qual é essa missão.
É neste preciso momento que entram no avião, empurrando-se uns aos outros zumbindo, vários mosquitos, sentando-se todos no mesmo assento, formando uma nuvem negra que toma a forma de animal sentado.
A entrada dos mosquitos provocou uma grande inquietação entre os cordeiros na cabine, que rapidamente se transmitiu aos no porão. E a razão é muito simples. Os cordeiros já estavam convencidos que uma sociedade sem classes fosse possível com o lobo, mas não confiavam nos mosquitos. Como se pode confiar num animal de um tamanho minúsculo, que a única coisa que têm são asas para atacar, a probóscide para sugar e o corpo para armazenar o sangue roubado. Para que outra coisa pode servir o mosquito? Questionavam-se os cordeiros. O lobo é verdade que se habituou a comer cordeiros, no entanto faz outras coisas. Um lobo é capaz de ter uma conversa, e até há histórias onde os lobos dizem frases completas cheias de sentido, já um mosquito é só zumbir.
Por isso, um grupo de cordeiros veio falar com o Carlos exigindo que os mosquitos devessem abandonar o avião, convencidos que estavam de que eles nunca poderiam ter lugar na sociedade sem classes.
Uns lugares à frente, o castor Miguel percebeu a agitação dos cordeiros. Tinha um bom conhecimento de mosquitos, pois estes abundam em cursos de água, em especial quando a corrente é fraca, e os castores são responsáveis pelas represas nos rios que os mosquitos adoram. Com a simpática intenção de tranquilizar os cordeiros, o Miguel levantou-se do seu lugar para que todos os ouvissem com nitidez e disse:
– Os mosquitos também fazem parte do ecossistema.
O que convenhamos é um a afirmação bastante ambígua, e, como iremos ver, bastante arriscada, pois a preocupação dos cordeiros é com a sociedade sem classes, não é com o ecossistema. A não ser que para o Miguel a sociedade sem classes seja como um ecossistema.
O cordeiro Carlos, que era das animais mais inteligentes a bordo, mas que nunca tinha considerado os impactos no ecossistema de uma sociedade sem classes, viu na intervenção do Miguel uma oportunidade, resolvendo fazer do castor um bode expiatório.
– Como podem ver é esse castor o responsável pela presença dos mosquitos.
Disse o Carlos, após o que os outros cordeiros começaram imediatamente a apupar o Miguel e a acusá-lo de ser contrarrevolucionário.
O castor ficou muito incomodado com a acusação do Carlos começando a dar pequenos saltos, pois a sua cauda espalmada ia batendo descontroladamente nas costas do assento. Tão agitado ficou que o burro Castanho lhe colocou o braço à volta dos ombros e disse-lhe com simpatia:
– Cordeiros, era disto todos os dias quando eu vivia na aldeia. São mesmo assim, passam muito tempo sem dizer nada, mas quando metem uma na cabeça não se calam, e repetem sempre a mesma coisa uns aos outros, um diz mé e o outro rediz mé para um outro dizer mé outra vez.
O castor, que era o cúmulo da simpatia e bastante sensível às manifestações de afeto, lá sossegou a sua engraçada cauda. Contudo, ficou meditabundo pois a acusação de contrarrevolucionário é das mais graves na sociedade sem classes.
Provavelmente tenho de vos explicar o que é meditabundo e contrarrevolucionário.
Meditabundo é pensativo, mas um pensativo que é visível na cara. Olha-se para a cara dele e percebe-se logo que está meditabundo. A melhor forma de perceber se alguém está a pensar ou meditabundo é tentar falar com ele, quanto mais tempo demorar a responder mais meditabundo ele está.
Era assim que estava o castor, estava tão tão meditabundo que o burro aproveitou para olhar para ele com atenção. Tinha a graça natural dos castores, com os seus dois dentinhos à frente, do lado de fora da boca, como se de uma porta se tratasse, fazendo um bonito conjunto com os pequenos óculos redondos que usava na ponta do nariz. Contudo, percebeu, o que numa primeira impressão não lhe tinha sido evidente, que era um indivíduo com a preocupação constante dos que levam as suas convicções muito a sério, pois os óculos davam saltos na ponta do nariz pelas inspirações rápidas que fazia.
Também o burro ficou meditabundo, tinha pensado que o castor poderia ser um bom companheiro de viagem, alguém para a brincadeira, e agora percebia que o Miguel, para além de viajar para a sociedade sem classes, também estava determinado em definir que rumo tomar. Em resumo, o que o burro Castanho percebeu foi:
A viagem para a sociedade sem classes não se faz percorrendo a distância mais curta entre duas sociedades: a sociedade com classes e a sociedade sem classes.
Ou seja, para se passar de uma sociedade com classes para uma sociedade sem classes não basta retirar com classes para ela ficar sem classes, pensou o burro. Já várias vezes o burro tinha observado que embora frequentemente duas frases apenas difiram numa única palavra na realidade a diferença é muito maior. E foi o que burro voltou a pensar agora. Matutou nisso, bebeu mais um gole de sumo de tomate apimentado que lhe soube tão bem que até deixou de matutar por um bom instante, e depois voltou a matutar. Se calhar tem a ver com o que disse o castor acerca do ecossistema, cogitou por fim com o sabor espesso do tomate na língua.
Agora que expliquei o que é meditabundo, ainda continuo em dívida para convosco, pois falta-me explicar o que é contrarrevolucionário. Para a resposta necessito de explicar duas outras palavras: ecossistema e revolucionário.
Um ecossistema é um sistema onde uma diversidade de seres vive em equilíbrio. O que isto quer dizer é que embora vão ocorrendo alterações pontuais no geral fica tudo na mesma. Por exemplo, na sociedade com classes os lobos comem os cordeiros, mas não comem os cordeiros todos pois caso contrário os cordeiros desapareciam e os lobos morriam de fome. Por isso na sociedade com classes há sempre cordeiros e lobos e, se gostardes de aprender, que é o mesmo que dizer, se tiverdes curiosidade, posso-vos mesmo assegurar que o número de lobos está relacionado com o número de cordeiros.
Por outro lado, um revolucionário é aquele que considera que o ecossistema onde os lobos comem os carneiros é um ecossistema injusto, e propõem outro ecossistema onde o lobo e o cordeiro se alimentarão juntos.
O que é então um contrarrevolucionário? Bom, agora a resposta é fácil, é um revolucionário que acha que o ecossistema dos revolucionários é injusto.
Imaginem, por conseguinte, como é grave a acusação que o Carlos fez ao Miguel. Estão todos embarcados para uma nova sociedade e já alguns dos que passageiros não acreditam no destino. Parece ser caso para atirar o castor para fora do avião, e foi mesmo isso que alguns dos cordeiros mais exaltados sugeriram, não fosse o cordeiro Carlos colocar alguma água na fervura e dizer:
– Tudo a sem tempo, tudo a seu tempo.
Sentado junto aos mosquitos está um coiote jovem de nome Desgracius que por andar sempre sozinho não tem muita educação nem se incomoda com os seus vizinhos, daí estar sentado onde está. Tendo notado na repulsa que os mosquitos provocaram nos passageiros alguma similaridade de destino, o Desgracius perguntou-lhes com um risinho malandro:
– Dizem que vai ser bom isto da sociedade sem classes, eu assim que chegar vou arranjar um descapotável GT Sport.
Tem sido assim a vida do coiote na sociedade com classes, muitas vezes por pradarias inóspitas onde a comida não abunda, vendo ao longe passar na estrada os carros a alta velocidade. Mais tarde, comentando as suas agruras com um outro coiote com que se cruzou, esfaimado como ele, deu-lhes para conversar sobre os automóveis. O outro, um coiote mais velho, contou-lhe debaixo de um céu estrelado que os melhores eram os descapotáveis GT Sport. Desde aí não mais isso lhe saiu da cabeça.
Os mosquitos, que como vimos, ainda são animais com menos disposição para conversar do que os coiotes, nada disseram, mas tomaram a forma de um coiote sentado, pois, como sabiam que não eram muito bem vistos a bordo tentavam ser como os restantes passageiros.
O coiote, baralhado, e porque não era particularmente inteligente, pôs o nariz no meio dos mosquitos para ver se cheiravam como um coiote. Tanto lá o enviou que vários lhe entraram pelas narinas, o que provocou uma grande atrapalhação tanto no coiote, pela irritação, como nos mosquitos, pois tinham-nos avisado que apenas poderiam ir para a sociedade sem classes se não sugassem o sangue a nenhum dos outros animais.
Foi a muito custo, e apenas após vários espirros, que o coiote se viu livre dos mosquitos que lhe entraram pelo nariz. Ficou bastante irritado, pois parecia-lhe também não era aqui que se livrava daquele destino de ter nascido coiote.
Também duas galinhas muito jovens tinham embarcado à procura de uma vida melhor. Vinham sentadas logo atrás do coiote e dos mosquitos. Ouviram falar da sociedade sem classes depois de muito terem sonhado com Paris. Já várias vezes estas duas galinhas tinham tentado ir para Paris a salto, uma vez que as galinhas não voam, e sempre foram retornadas para a terra delas, pois por muito que se tenham queixado da tirania do galo que por lá havia, nunca foi considerada justificação suficiente.
Encontraram então o furão Jeitoso que lhes disse que a sociedade sem classes seria ainda melhor do que Paris, sem amos nem tiranos, deixou ele bem claro. Pediu-lhes apenas que lhes desse todos os ovos que tinham para comprar os lugares na viagem, com o que conseguiu o assento que as duas partilham.
O furão tinha um ar agitado e espertalhão, com o focinho sempre no ar.
O castor Miguel saudou com um largo sorriso a chegada a bordo das galinhas, comentando para o burro Castanho, que a sociedade sem classes era a terra de todos, todos, todos. Já mostrou menos agrado com a presença do furão, que acusou de vaidade por ter a pele demasiado lustrosa.
Já devem estar os meninos mais atentos a dizer que sendo o castor muito inteligente não faz muito sentido dizer uma coisa numa frase e logo na seguinte dizer o contrário. Então, todos, todos, todos, apenas se aplica às galinhas, aos furões não? É bem verdade, tenho de concordar convosco, mas talvez a desculpa do Miguel seja que o disse num momento de emoção, e quando nos emocionamos não pensamos.
O burro nunca tinha visto galinhas daquela espécie. As penas formavam uma carapaça preta pintalgada a pontos brancos que lhes escondia o corpo. Não se conseguia perceber se eram gordas ou magras, e tinham uma bela crista vermelha que atribuiu a serem jovens. Eram bem vistosas as galinhas. Acerca do furão concordou com o Miguel, tinha mesmo a pele muito bonita e lustrosa, atribuindo a alguma inveja o desagrado revelado pelo castor.
O furão, que é um animal muito astuto, percebeu imediatamente as reticências do castor. Resolveu assim, para criar bom ambiente, pedir a uma das galinhas, a Amélia, para fazer uma demonstração de quizomba.
Cuspiu então nas suas duas mãozinhas e passou pela cabeça para pôr o pelo lustroso, depois estendeu a mão à Amélia, empertigaram-se os dois no corredor começando a rodopiar por entre as cadeiras, para um lado e para o outro, fazendo o Jeitoso bonitas pausas em que girava a parceira variando o ritmo da passada.
O efeito foi o esperado pelo furão. Todos os animais ficaram focados no par. O burro pensou que teria de aprender a dançar daquela forma, mas foram os cordeiros que ficaram mais entusiasmados, colocando-se de pé em cima das cadeiras dando longos més quando o par passava.
Empolgado pelo alarido que estava a gerar, o Jeitoso resolveu fazer o seu movimento de maior sucesso. Após uma pausa na passada, tombou a Amélia para trás e, com ela naquela posição instável, com a crista quase a tocar o chão, disse-lhe ao ouvido: Criptomoeda. Foi então que um arrepio percorreu a galinha dos pés à cabeça deixando-a completamente sem penas a não ser nas costas, onde a mão do furão a segurava.
Terminou ali a dança e esclareceu-se a dúvida do burro, debaixo das penas a Amélia era uma galinha escancelada apresentando até algumas nódoas negras.
Enquanto o furão rodava sobre si, agradecendo, a galinha apanhava as penas e dirigiu-se para junto da colega, a Alzira, que começou pacientemente a repor a carapaça da Amélia, pena a pena.
Quem chegou numa correria vindo do porão para ver o que se passava foi o cordeiro Carlos. Podia-se ver pela sua expressão que não estava nada satisfeito, especialmente com o comportamento dos outros cordeiros. Depois de conferenciar longamente com o cordeiro Englês acharam que a situação obrigava a ter de se tomar algumas medidas.
Mais agradado ficou o lobo Alferes, embora a sua especialidade fossem os cordeiros, percebeu que o ambiente festivo trazido pelo furão e pelas suas galinhas poderia desanuviar a atmosfera criada na aeronave pela expetativa da sociedade sem classes e todos sabemos que soturnidades não dão festins. Não se conteve e disse:
Nem só de preocupações vivem os animais, a viagem para a sociedade sem classes também deve ser alegre.
Nesse momento fez-se ouvir um grande urra da parte do furão, que olhou para as duas galinhas com os seus olhos penetrantes levando-as a ecoar urra também. Igualmente, em alguns dos cordeiros o entusiasmo foi imediato e fizeram prolongados més. Tinham conseguido ouvir o que furão disse ao ouvido da Amélia e tinham sentido o mesmo arrepio, embora não percebessem a razão. Até o Castanho não ficou indiferente, que linda passada aquela, teria mesmo de aprender, e quanto à criptomoeda nada lhe passou por aquelas orelhas de burro. A parte da frente da cabine foi mais comedida, uma vez que os animais que aí se encontram não gostam de mostrar as suas emoções. Apenas a águia Samcia disse baixinho com um sorriso:
– Ora, ora.
A atitude do lobo não agradou ao cordeiro Carlos, até tinha achado bem a vinda do lobo, pois corroborava as suas afirmações acerca do que é a sociedade sem classes, mas agora temia estar a perder o controlo. Já o castor Miguel hesitou, por um lado achava que na sociedade sem classes não deveria haver lugar à repressão dos impulsos naturais e a alegria era um deles. Por outro lado, não gostou das manchas que viu na Amélia.
– Até que ponto aquela seria uma alegria verdadeira, questionou-se ele.
Resolveu perguntar ao elefante Alberto, que considerava ser o único animal a bordo que teria uma ideia mais informada do que seria a sociedade sem classes:
– Que lhe parece esta sugestão de largar as preocupações e abraçar a alegria na ida para a sociedade sem classes?
O elefante virou a cabeça para fitar o castor com os aqueles olhos simpáticos, respondendo com uma pergunta:
– Poderão os jovens viver muito tempo com preocupações?
O Miguel, que nas suas formulações conjeturara um caminho sem retorno para a sociedade sem classes, não ficou entusiasmado com a resposta. Mudando até de opinião sobre ser o elefante quem mais saberia sobre o destino da viagem.
Não tem nenhum mal se alguns de vós não compreendestes por que razão a resposta do Alberto não agradou ao castor. Às vezes não compreender é melhor do que compreender, pois aqueles que compreendem tudo pode ser que não saibam o que é não compreender. Por isso, não compreender é meio caminho andado para compreender, já compreender pode ser um beco sem saída e, na realidade, nada compreender.
O que vos fui eu dizer. Temo que agora os que compreenderam a reação do Miguel possam não ter compreendido o que acabei de dizer. Ficam assim duas coisas para explicar, a questão é saber por qual começar. Se explicar primeiro aos que não compreendem o desagrado do castor, todos os meninos ficam a compreender, havendo depois o perigo de, ao explicar depois porque é que não compreender pode ser melhor do que compreender, levar-vos a pensar sobre o que disse e poderem deixar de compreender o comportamento do castor. Já se explicar primeiro as vantagens de não compreender posso fazer com que os que compreendem deixem de compreender e assim ao explicar a segunda parte todos vós passais a compreender por igual, ou seja todos compreendem sabendo também as vantagens de saberem o que é não compreender.
Espero que a minha explicação sobre a ordem das duas explicações não seja demasiado complicada e, por isso, nada melhor do que passar às explicações.
Então, porque é que não compreender pode ser melhor do que compreender. Imaginem que os que compreenderam o desagrado do castor, o que compreenderam foi que o castor estava à espera de uma resposta, em vez de uma pergunta, e por isso deixou de considerar o Alberto como sendo quem mais sabia acerca da sociedade sem classes. E imaginem que outros dos que compreenderam acharam que o castor, que, como já tínhamos visto antes, tem uma ideia muito bem definida do que deve ser a sociedade sem classes, e também da forma como se deve alcançar, não gostou da resposta do Alberto que parece indicar que independentemente dos planos as pessoas são como são. Perceberam estes últimos, e olhem que isto já é perceber muito, que na opinião do Alberto não se consegue colocar a alegria a fazer parte de um plano apenas porque assim se deseja.
Quem destes que compreenderam compreendeu melhor? Reparem que se ambos estiverem muito certos do que compreenderam, se nunca pensarem que podem estar errados, nunca irão saber se compreenderam mesmo ou não compreenderam. De onde se conclui que compreender pode ser igual a não compreender. Por isso o teimoso é aquele que acha que compreende tudo, já o perplexo pensa que não compreende nada.
Ambos, os teimosos e os perplexos, sofrem do mesmo mal, estão tão certos de si que não duvidam do que compreendem e do que não compreendem, respetivamente.
Estão a compreender?
Pois é, agora explico a razão pela qual o Miguel não gostou da resposta do Alberto. Pois o Miguel acha que a sociedade sem classes é como a última estação de uma linha de um comboio, a qual se chega de acordo com um plano bem definido, com as suas paragens e as suas estações e a resposta do elefante pareceu-lhe descabelada, sem nenhum planeamento, como se fosse possível ir para a sociedade sem classes ao deus-dará. Foi isso que ele não gostou na resposta do elefante.
Já sei que alguns dos meninos que entenderam estão agora a dizer que afinal tinham razão e por isso não precisavam de não compreender. Pois é, mas agora têm a certeza de que entenderam e antes apenas estavam convencidos disso.
E como podemos ter a certeza que o que agora compreendemos é mesmo o que devemos compreender, estarão alguns meninos a perguntar.
A esses meninos, e meninas, tiro eu o chapéu, e só vos posso dizer uma coisa, agora compreendestes tudo. Por isso continuemos com a história de forma a irmos compreendendo, deixando de compreender e voltando a compreender.
Como reparastes, o Carlos não ficou nada satisfeito com o comportamento de alguns dos seus cordeiros. Pois é, para o Carlos a viagem para a sociedade sem classes não era dada a folias, era uma coisa muito séria. E aquele furão não augurava nada de bom, com as suas galinhas e as suas danças.
– O furão é como o burro, mas para pior, disse ele ao amigo Englês.
O problema mais imediato, segundo o Carlos, eram aquelas duas galinhas que vinham com ele, a Amélia e a Alzira. Alguns dos cordeiros tinham perdido a cabeça e havia que evitar que o mal contagiasse os restantes. Por isso, engendrou uma armadilha com o Englês. Foi assim que as coisas ocorreram.
Estavam dois cordeiros muito entusiasmados junto das galinhas e do furão a falar sobre criptomoedas, que segundo o Jeitoso serão o futuro da sociedade sem classes, quando apareceram dois outros cordeiros a convidá-los para um jogo de cartas no porão do avião.
Os cordeiros bem disseram que poderia ficar para mais tarde, mas o Carlos tinha enviado dois animais bem encorpados, que se colocaram entre os cordeiros e as galinhas e, nunca deixando de conversar com eles sobre os prazeres dos jogos de cartas e da camaradagem no jogar, os foram empurrando para o porão. A Alzira e a Amélia ainda deixaram cair umas lágrimas, por indicação do Jeitoso, que as tinha muito bem-ensinadas, mas os cordeiros corpulentos foram-lhes dizendo, com bons modos, que depois do jogo poderiam voltar, o que fez com que eles, não completamente convencidos, não oferecessem resistência.
A verdade é que boas razões tinham eles para desconfiar, pois assim que desceram as escadas do porão foram cercados por vários outros cordeiros que os amarraram a uma coluna.
Não passou muito tempo para as duas galinhas perguntarem ao cordeiro Carlos pelo Leonel e pelo Maurício, que eram estes os nomes dos cordeiros aprisionados no porão. Que gostariam de os ir ver jogar às cartas, desejar-lhes boa sorte.
O Carlos disse às galinhas, com uma voz bem simpática e um rosto quase ternurento, coisa pouco comum neste cordeiro enrijecido nas suas formulações teóricas que não deixavam espaço para o sentimento, que podiam descer, e assim que desceram foram também apanhadas pelos cordeiros e amarradas.
Passado algum tempo, o furão, vendo que as Amélia e a Alzira não regressavam foi à procura delas. Quando se dirigia para o porão, um cordeiro que tinha sido colocado à entrada, perguntou-lhe pela senha.
O Jeitoso, que não sabia que senha era essa, respondeu apenas:
– Onde estão as minhas galinhas?
– Temo que não seja essa a senha, disse o cordeiro porteiro colocando-se à frente para impedir a entrada do furão.
– As galinhas não são suas, na sociedade sem classes não há amos nem servos, acrescentou o Carlos, que estava por perto.
– Na sociedade sem classes o principal bem é a felicidade, respondeu-lhe o furão, virando as costas ao cordeiro.
Mas não se foi sem réplica:
– Como pode haver felicidade sem haver igualdade? Atirou-lhe ainda o Carlos quando o Jeitoso se afastava.
Como podeis observar, pelo menos aqueles de vós que sois mais observadores, aqueles que quando ouvem histórias feitas de palavras vão com elas fazendo imagens na cabeça, e depois começam a questionar essas imagens, dando-lhes vida, fazendo-as andar para a frente e para trás, como de um filme se tratasse.
E que imagens são essas? Numa está o Miguel a falar com o Alberto sobre se a felicidade está no caminho para sociedade sem classes, e na outra está o Carlos a falar com o Jeitoso sobre exatamente o mesmo assunto.
O que vemos a acontecer nas imagens? Muitas coisas. A dúvida do castor sobre se a felicidade pode ser útil, a certeza do cordeiro sobre qual o caminho para a sociedade sem classes, a sabedoria do elefante que se recusa a dar respostas demasiado simples, a traquinice do furão que diz uma coisa e está já a pensar noutra.
O que podemos fazer com o que vemos? Podemos, por exemplo, fazer grupos. Neste caso seriam dois grupos: o Miguel e o Carlos no primeiro e o Alberto e o Jeitoso no segundo. No primeiro vemos o castor e o cordeiro preocupados com alcançar a sociedade sem classes. No segundo vemos o elefante e o furão envoltos numa nuvem de felicidade. Sim, é isto que podeis observar. E agora podeis olhar de novo para as imagens e fazer a pergunta:
– No que é que o Miguel difere do Carlos, e o Alberto do Jeitoso?
Pois é, quando ouvimos uma história podemos ir inventando outras histórias. Ademais vos digo, foi assim que esta história foi inventada. Foi feita da imaginação de ouvir outras histórias.
Bom, mas regressemos a esta história contada, e não aquela que alguns dos meninos um dia ireis contar por esta terdes ouvido.
Percebendo que não conseguiria resolver o problema sozinho, o furão foi falar com o Alferes, o lobo. Embora não se conhecessem, perceberam que tinham alguma afinidade. Primeiro tiveram de chegar a acordo sobre o destino das galinhas, pois o furão tinha alguma desconfiança das intensões do lobo. O Alferes tranquilizou o Jeitoso, não gostava muito de galinhas, cresceu com cordeiros e era um animal de hábitos.
Decidiram que o melhor seria organizar uma festa de forma que todos ficassem distraídos e pudessem assim ir ao porão procurar a Amélia e a Alzira. Tinham, no entanto, o problema de quem iria ao porão. O furão era um pouco medricas, era melhor a falar do que a se meter em aventuras, já o lobo era demasiado conhecido dos cordeiros, pelo que qualquer tentativa de entrar dentro do porão não passaria desapercebida. Foi quando se lembraram do burro Castanho. É verdade que mal o conheciam, mas, por um lado tinha mostrado muito entusiasmo com a dança, e por outro parecia o tipo de animal que se fosse convencido que estava a fazer o bem, então não olharia a esforços para alcançar o seu fim.
Foi assim a conversa do lobo e do furão com o burro:
– Lindas orelhas que você tem. Disse o lobo.
– Ora, ora, nada de especial, são apenas orelhas de burro. Respondeu o Castanho que por mais que tentasse não resistia a um elogio.
– Então gostou da dança? Perguntou o furão.
– Muito mesmo, gostaria muito de aprender.
– Teria todo o gosto, não fosse a falta a Amélia e da Alzira.
– Que se passa com elas?
– Pois é, não sabemos bem, desde que entraram no porão nunca mais foram vistas. Respondeu o lobo.
– Elas estão bem? Questionou o burro preocupado.
– Não sabemos, tentei entrar no porão, mas o cordeiro que está na entrada pediu-me uma senha. Parece que apenas assim se pode entrar. Temo que elas estejam sequestradas lá dentro.
Disse o furão baixinho. Ao que o Alferes acrescentou olhando para os lados para ter a certeza que ninguém estava a ouvir:
– Aquele cordeiro que se dá pelo nome de Carlos não é de confiança.
O burro Castanho também não gostava muito do Carlos, não que o conhecesse, mas ele não tinha sido nada simpático com o Miguel, e o burro já se considerava amigo do castor.
– Se eu puder fazer alguma coisa para ajudar, contém comigo. Voluntariou-se o burro sem hesitação.
– Muito agradecidos. Disseram o lobo e o furão sorrindo satisfeitos em uníssono.
Foi então assim que planearam tudo. Primeiro, o burro deveria pedir para aprender a dançar quizomba. E esta primeira parte era muito importante, pois o Carlos desconfiaria se fosse o lobo ou o furão a sugerir a organização de uma festa. Só então o furão se manifestaria, diria que tinha todo o gosto em ensinar, não só o burro, mas todos aqueles que quisessem aprender. O burro iria convencer os passageiros a participar na dança e quando tivessem todos distraídos o burro iria ao porão à procura das galinhas.
Para executar o plano era necessário fazer pares. Assim, o burro desafiou os pais, a Borisca e a Laranja, a darem um passo de dança. A Laranja estava hesitante e um pouco envergonhada. Foi a Borisca, determinada, como sempre, que agarrou no casco dela e a puxou para o corredor encostando a sua cabeça à da Laranja, ficando as duas vacas abraçadas numa bonita posição para início da dança com os quatro chifres entrelaçados.
Os mosquitos nem precisaram de ser convidados, que não queriam perder uma oportunidade para serem aceites. Assim dividiram-se em dois grupos, um tomando a forma da Amélia e o outro a forma da Alzira. A Amélia, feita de mosquitos, colocou as mãos, as mãos feitas de mosquitos, nas costas do assento à frente de onde o castor estava sentado olhando, com olhos feitos de mosquitos, para ele intensamente. O Miguel, que pretendia deixar claro não ser um contrarrevolucionário, mostrando que os mosquitos eram inofensivos, aceitou o convite aproximando-se do grupo de mosquitos a fazer de Amélia que logo o envolveram num bonito abraço.
Por outro lado, os mosquitos que faziam de Alzira começaram a sorrir para o coiote incitando-o para dançar. Se antes o Desgracius não tinha hesitado em se aproximar deles, agora estava desconfiado, pois sabeis que gato escaldado tem medo de água fria. Foi necessário os mosquitos começarem a fazer movimentos ondulatórios como que estando a alisar as penas com a pata, colocando-as atrás das orelhas, para ele ultrapassar a sua desconfiança e se deixar enlaçar.
O elefante, que era uma simpatia, e reparando que a Eloísa tinha ficado um pouco desconfortável assim que ouviu falar de baile, pois pensava que dado o seu pequeno tamanho ninguém dançaria com ela, levantou-se do seu lugar e foi convidá-la. A formiga ficou intimidada com aqueles grandes olhos, lá em cima, fixos nela. O Alberto estendeu-lhe a tromba com um sorriso irresistível, a que ela abraçou a ponta com ambas as mãos, sentindo-se muito amparada.
A águia Samcia, curiosa dos planos do lobo e do furão, também resolveu participar. Para isso pediu com delicadeza à leoa se podia dançar com o marido. O Gaspar ficou bastante surpreendido, pois tal convite não lhe parecia estar no protocolo, mas estava tão agradado com águia, achando-a um animal bastante distinto, bem capaz de figurar num brasão de armas, que concedeu dar-lhe uma dança. Ficaram frente a frente, o leão muito altivo e a águia com a cabeça careca virada para trás.
Quanto à banda para animar o baile, o lobo ofereceu-se, que tinha muita vaidade nos seus prolongados uivos noturnos que sabia bem provocarem arrepios de emoção em quem os ouvia. Para o acompanhar disponibilizou-se a Felícia que em jovem tinha sido corista e se orgulhava muito dos seus rugidos, também capazes de entusiasmar uma plateia, tanto que chegou a rainha. Já a serpente foi desafiada a tocar com o guizo da sua cauda.
Estando todos preparados, o Jeitoso tomou nos braços o Castanho e disse:
– Vejam como eu faço.
A Siza começou a bater o ritmo com a cauda no banco, acompanhado pelo guizo e um estalido intermitente que fazia projetando a língua para fora numa chicotada. O Alferes iniciou um prolongado uivo repetindo:
– Uuuuuiiii o amoerreeeee.
Ao que a Felícia rugia sempre que ele parava para tomar ar:
– Não acaba, não acaba.
– Atenção – disse o furão – um, dois, três – bateu com a ponta do pé no chão – um, dois, três – repetiu tomando o burro nos braços e movimentando-se para a frente e para trás, dando pequenas voltas, – a dança está na passada – afirmou como uma primeira lição.
O Castanho no início ficou um pouco atrapalhado pois não conseguia sincronizar as suas quatro patas com o movimento de três em três.
– Não olhem para os pés – disse o Jeitoso não só para o burro, mas para todos os bailarinos.
Quem não precisava olhar para os pés era a Eloísa. O Alberto não só se revelava um exímio dançarino como tinha retirado a formiga do chão balançando-a com a sua tromba de uma forma que ela nunca se tinha sentido tão enlevada. Verdade que primeiro se sentiu um pouco nervosa com o balançar que o elefante imprimia à tromba, mas depois começou a pressentir uma alegria que era uma novidade para ela. Sendo a formiga um animal tão sério, sempre comprometido com as suas obrigações, começou a rir de uma maneira que não conseguia controlar. Nem parecia coisa dela. O que diriam as outras formigas se a vissem agora naqueles preparos, pensou. Se calhar até corriam com ela do formigueiro. Mas a verdade é que pouco se importou, que não resistiu a dizer bem alto:
– Então é isto a sociedade sem classes.
E disse-o com tanta graça que até o sisudo do cordeiro Carlos olhou para o companheiro Englês e sorriu piscando o olho.
Caindo em si, e até um pouco envergonhada pela descompostura, a formiga desculpou-se:
– Não era necessário tomar o avião para a sociedade sem classes, bastava só esperar mais um pouco que lá chegaríamos de qualquer forma.
Foi então que os dois cordeiros começaram a rir mesmo a sério. E como não conseguiam deixar de rir até começaram a dançar um com o outro como vos irei contar.
Antes de prosseguir com a história tenho de fazer aqui um parêntesis:
Há aqueles que quando se sentem na sociedade sem classes desdenham do esforço necessário lá chegar.
Normalmente esses são aqueles que até se sentiam bem na sociedade com classes. E pensem lá, que outro a animal, senão a formiga, vive em paz numa sociedade com classes. Já viram alguma formiga a protestar? Alguma formiga a dizer que as coisas não estão bem e deveriam ser de outra forma? Tenho a certeza que não. Quem protesta são as cigarras e neste avião, por estranho que pareça, não vai nenhuma. O que nós vemos muitas vezes é as formigas a desdenhar daqueles que exigem uma sociedade sem classes. Isso sim. O que é que as formigas dizem? Dizem quase sempre:
– Não querem trabalhar.
São assim as formigas. Estão convencidas que só elas trabalham. Mais ninguém trabalha. E se alguém lhes diz que também trabalha sabem o que é que a formiga diz? Diz assim:
– Isso não é trabalho.
Tal e qual. Para as formigas trabalho é sinónimo de formiga. Sabem o que quer dizer sinónimo? São duas palavras que querem dizer a mesma coisa. Ou seja, no dicionário das formigas quando se diz formiga está-se a dizer trabalho e quando se diz trabalho está-se a dizer formiga. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Se tudo isto acontece até nem é por culpa das formigas. É por causa de um senhor chamado Esopo, que inventou uma história com uma cigarra e uma formiga, colocando apenas a formiga a trabalhar. E sabem quem é que gosta mais dessa história?
As formigas, pois claro. O problema é que as formigas andam há mais de 2500 anos, 2500 anos imaginem, a ouvir a história da cigarra e da formiga. Não admira que estejam todas convencidas que só elas trabalham. Mas também é por culpa da maneira de ser das formigas, que levam tudo muito à letra. À letra da história, pois as cigarras também ouvem a mesma história há 2500 anos e não estão nada convencidas de que só as formigas trabalham. Claro que as formigas aproveitam isso para gozar com as cigarras. Dizem elas:
– Ai, as cigarras, andam há 2500 anos a ouvir a história e ainda não aprenderam, nunca irão trabalhar.
Ao que as cigarras respondem:
– Trabalhamos, sim senhora, trabalhamos na indústria do entretenimento.
O que deixa as formigas a rir, não tanto como quando balançam na tromba do elefante, mas ainda assim a rir, aqueles risos em que dá tempo para colocar a mãozinha em frente da boca, e perguntam às cigarras no gozo, embicando os olhos que os lábios estão cobertos:
– Indústria do entretenimento? De que engenharia é feita essa indústria?
É que as formigas são especialistas em várias engenharias, mormente a engenharia civil. Vejam as habitações subterrâneas que fazem e os longos carreiros. Tivesse eu tempo e também vos poderia falar da engenharia dos transportes e logística das formigas.
A verdade é que as cigarras não ligam muito, está-lhes no sangue não ligar, que até quando veem uma formiga muito carregada perguntam:
– Olha a senhora engenheira, o que leva aí nas costas?
Não o dizem para desfazer da formiga. Dizem-no pois estão a trabalhar. É esta a indústria do entretenimento. Tem como objetivo fazer-nos esquecer dos pesos que por vezes temos de carregar nas costas. Pelo menos é assim que as cigarras pensam. E acrescentam as cigarras:
– Só as formigas é que não conseguem perceber isto. Até levam a sério o que as cigarras lhes dizem.
Pois é, nisto tenho de concordar com as cigarras. Em 2500 anos as formigas também não aprenderam. É que há quem trabalhe e não se importe de tempos a tempos folgar as costas com um pouco de entretenimento.
As formigas são muito teimosas. Mais vos digo, um dos grandes mistérios desta história é saber a razão para ter vindo uma formiga e por outro lado não ter vindo nenhuma cigarra.
Se estão recordados, tínhamos perguntado o que estaria a formiga a fazer na viagem para a sociedade sem classes. Começo a achar que ela lá no fundo não queria vir, mas foi apanhada em alguma enxurrada e não teve outro remédio. Que com certeza já deveis ter reparado que se deitarmos água por cima de uma formiga ela não se afoga. Vai com a água e quando encontra terra firme lá recomeça a sua caminhada incansável. Deve ser o que aconteceu à Eloísa, algum dilúvio a empurrou para dentro do avião para a sociedade sem classes. Provavelmente ainda tentou que ele não acontecesse, o dilúvio, mas faltou-lhe ali o engenho.
Mistério, mistério mesmo, é porque não veio nenhuma cigarra. Não sei se foi por intervenção do cordeiro Carlos, que ele também não gosta do burro, e o Castanho é, nesta viagem, aquele que está mais próximo do que é uma cigarra. Não se esqueçam que ele veio na desportiva, passa o tempo de óculos escuros na testa a beber sumo de tomate, e só quer é aprender quizomba. Mas os mistérios são assim mesmo, mistérios por resolver, dado que uma vez resolvidos deixam de ser mistérios.
Como conclusão posso-vos dizer:
Alguns são empurrados para a sociedade sem classes sem o desejarem e se dela disfrutam desculpam-se dizendo que também aqui se chegaria sem necessidade de haver dilúvios.
É esta a melhor explicação que encontro para a presença da Eloísa.
Os pares continuavam rodando, rodando, e a música tornava-se mais inebriante com o ritmo da passada, especialmente quando o Jeitoso dizia:
– A dança está na pausa.
Nesse momento apenas se ouvia o guizo da serpente e sustinha furão o burro quando este só tinha duas patas no chão, para de seguida recomeçar a batida da cauda da Siza, iniciando o Alferes um novo:
– Uuuuuiii o amorreeee…
E todos os recomeçavam a rodar.
O casal de vacas também não dançava nada mal. Com os chifres enlaçados, a Borisca conduzia a Laranja com imensa leveza. As duas vacas estavam lindas. Era assim que as via o Castanho, que não perdia uma oportunidade, quando conseguia deixar de pensar nos seus pés trapalhões, de olhar para a felicidade dos pais, que também era a sua.
Com certeza que já tereis visto duas vacas a dançar. Acontece muito quando nos bailes não há bois suficientes para formar pares. Ou, até mais frequentemente, quando os bois preferem passar o tempo ao balcão a beber cerveja e a falar de futebol. Nessas alturas acontece que as vacas, para não se aborrecerem começam a dançar umas com as outras, rodopiando na pista de dança, não sem antes decidirem qual das duas fica encarregue de conduzir o par.
Sim, podeis não o saber, mas dança tem a ver com condução. Estranho até que o Jeitoso ainda não o tenha dito. Ele já explicou que a dança está na passada e na pausa, mas também está na condução, por exemplo, quem é que indica que é o momento de fazer uma pausa. Pois é, esse é o que conduz o par.
Tudo isto da condução tem a ver com a forma como se entrelaçam os chifres. A que conduz tem de ir desencaixando as hastes e voltando a encaixar de forma a poder conduzir a companheira. Imaginem, se a quiser fazer rodar para a direita, tem de colocar o seu chifre do lado direito por dentro do chifre do lado esquerdo dela, por forma a lhe aplicar uma pequena força, rodando o par para a esquerda. É mais uma indicação do que uma força, pois o condutor não faz força e quando duas vacas já estão bem entrosadas a dançar fazem-no através e pequenas dicas,.
Distraí-me e escrevi uma frase com muitas vírgulas e poucos pontos, pelo que podereis ter ficado um pouco confusos. Vou então esclarecer. Reparai que a vaca que conduz coloca o chifre direito do lado de dentro do chifre esquerdo da vaca que está a ser conduzida para a fazer girar para o lado oposto, pois as vacas estão frente a frente, como num espelho.
Desta forma, a dança das duas vacas resulta num bonito tilintar do bater dos chifres seguido de doces marradinhas de testa que a vaca que conduz dá na vaca conduzida, de modo a a fazer andar para trás. Já se a vaca que conduz quiser andar para trás tem apenas de afastar ligeiramente a testa, que a vaca conduzida logo procura se aproximar.
Porque perco tanto tempo a descrever como dançam as duas vacas? Por duas razões. A primeira é que é bonito que se farta, que o diga o burro Castanho. A segunda é que um boi não dança da mesma forma com uma vaca. Dizem as vacas até há algumas vacas que preferem dançar apenas com vacas:
– Só uma vaca consegue perceber bem outra vaca.
É verdade, não sei se será assim com todos os bois, mas uma boa parte é mais meia bola e força. Reparem que eles não vão dançar porquê? Porque estão a ver futebol, ou a falar de futebol, pelo que quando uma vaca finalmente os consegue convencer a dar um passo de dança no que é que acham que o boi está muito provavelmente e pensar? Pois é, muito possivelmente no futebol. Por isso, em vez de terem a subtileza da sugestão, de levar a vaca a adivinhar qual a sua intenção e deixar que ela aceite a dica e o siga, não, muitos bois dão valentes marradas quando querem que a vaca ande para trás, puxam-nas pelos dentes para as trazer para si, e os tilintares dos chifres parecem autênticas lutas de esgrima.
Volto o repetir, não são todos os bois. Mas muitos são assim. É por isso que o Castanho pensa muitas vezes que a mãe Laranja teve muita sorte em ter tido como marido a vaca Borisca.
O que tem tudo isto a ver com a sociedade sem classes? Pois é, pois é, é com boas perguntas que se faz uma boa história e esta é uma delas.
Na sociedade com classes, onde viviam a Borisca e a Laranja, não era comum haver casais de vacas. Até os podia haver, mas viviam na clandestinidade. Quer dizer, viviam como se estivessem escondidos. E pior de tudo, como era proibido, muitas vezes até se sentiam culpados por estarem contra a lei. Desse mal padecia por vezes a Laranja. Tinha as suas dúvidas. Dava com a ela a pensar que a forma correta de dançar é como se dança com alguns bois. E olhem que não é só a Laranja, há muitas vacas que também pensam assim. Agora a verdade é que a Laranja nunca se tinha sentido tão feliz como agora a dançar com a Borisca. Já tinham dançado antes, mas aqui na sociedade sem classes foi a primeira vez que a Laranja dançou com a Borisca sem se sentir culpada por estar a ser feliz.
Na sociedade sem classes cada qual pode-se realizar sem entraves nem constrangimentos.
Deveis estar agora a pensar que a sociedade sem classes é uma sociedade sem bois. Não é bem isso, também há bois na sociedade sem classes, embora não venha nenhum aqui no avião. Agora, na sociedade sem classes a única forma de realização não é a forma como os bois acham que deve ser.
E vou-vos dizer uma coisa. Quem está mesmo convencido disto é o burro Castanho, que sabia muito bem como viviam os pais lá na aldeia e os viu a dançar aqui como nunca os tinha visto antes. Ademais, esta parte da história foi escrita depois de uma conversa que tive com o burro, que eu sozinho não teria chegado lá, que nunca tinha imaginado como seria a vida de um casal de vacas numa aldeia onde os bois ditavam as regras. Eu nunca vivi na clandestinidade. Por isso:
Um dos problemas da sociedade sem classes é podermos esquecer como é viver na sociedade com classes.
Também os mosquitos pareciam ter nascido para a dança, pois todos os passos errados que os seus parceiros davam eram absorvidos pela flexibilidade destes, nunca se deixando pisar. O que não vos deve surpreender, pois de certeza que já tentastes apanhar um mosquito que ande à vossa volta. Não é tarefa fácil. Atira-se-lhe a mão e ele já não está onde estava. Por isso, por muito desajeitados a dançar que sejam o Miguel e o Desgracius, os mosquitos que tomavam a forma das duas galinhas estavam sempre um passo à sua frente. O castor e o coiote até não eram de todo desajeitados, manifestavam era o seu jeito de diferentes formas.
O Miguel tinha na passada a cautela que já trazia na vida. Não há animal mais ecológico do que o castor. Sempre preocupado com a preservação da vida. Os lagos que forma com as suas represas são verdadeiros oásis de animais que ali decidem viver, ou que regularmente os visitam para beberem água e se refrescarem. Numa represa bebe-se com tranquilidade, sem a água nos entrar pelo nariz acima devido à corrente forte de um ribeiro. E que maior prazer existe do que estar a beber água pausadamente, regaladamente, sem estar com a aflição de nos podermos engasgar com ela. O Miguel também é convictamente dedicado à reciclagem. Não há ramo de árvore, por muito pequeno que seja, que ele não aproveite para entrelaçar e reforçar a parede que estanca a água.
Por tudo isto, mesmo na sua singeleza, o Miguel não conseguia deixar de se sentir muito satisfeito consigo próprio. Sem dar por isso, encostava-se à parede da represa, com a cabeça fora de água e as mãos sobre a barriga, e olhava à volta sentindo-se responsável pela sua criação. E é bem verdade, a represa do castor é um centro de vida. Um ecossistema, com já falámos.
Esta ideia de que na vida tudo deve funcionar como um ecossistema, onde não devemos intervir e deixar cada criatura ser como é também dava forma ao modo como o castor dançava com os mosquitos. Era a graciosidade de quem não se quer impor, não se percebendo bem quem conduzia quem. Se é o castor que conduz os mosquitos ou os mosquitos que conduzem o castor. Inicialmente estavam os mosquitos à espera de serem conduzidos, até porque estavam a fazer de Amélia, mas a delicadeza do Miguel era tal que parecia não lhes dar indicações. O que vale é que os mosquitos tinham visto a Amélia a dançar com o furão e tinham memorizado todos os passos, embora não sabendo muito bem o que cada um deles significava. Como um menino que decora a lição, mas depois não consegue responder a nenhuma pergunta que seja um bocadinho diferente daquilo que decorou. Diz-se desses meninos que parecem que sabem e na realidade não sabem pensar.
Era assim que os mosquitos que faziam de Amélia dançavam. Não se pode dizer que soubessem verdadeiramente dançar, repetiam o que tinham visto e, claro, sendo mosquitos, esquivavam-se a qualquer passo fora do ritmo do Miguel. A sorte deles, mosquitos, é que o ecológico castor nunca tenta forçar um passo, conduzir, improvisar, da mesma forma que admira a vida na sua represa, sem intervir, deixando correr.
Por tudo isto, podemos dizer que:
Alguns, estão na sociedade sem classes de cor, enquanto outros consideram isso natural.
Posso-vos dizer que quem discorda desta máxima é o cordeiro Carlos, que já acusou o castor de trazer parasitas para a sociedade sem classes.
O coiote era mais atrevido com a sua parceira Alzira feita de mosquitos ondulantes. Rapidamente venceu as reticências iniciais. Verdade que já tinha tido uma contrariedade com os mosquitos, quando eles lhe entraram pelo nariz dentro. Agora a vida de um coiote é feita de dissabores. Imaginai vós que o coiote fosse um animal que depois de algo lhe correr mal nunca mais voltasse a fazer o mesmo. O que seria do pobre coiote a quem tudo corre mal na maior parte das vezes? Pura e simplesmente deixaria de fazer coisa alguma. Contudo, não é isso que se passa com todos os que não têm uma vida fácil, repetem os mesmos erros pois a vontade de viver sobrepõe-se a tudo o resto. Caso contrário já não haveria coiotes há muito tempo.
Direis vós que os coiotes não são necessários para nada, assim como os mosquitos, só incomodam. Podeis ter alguma razão e, se calhar, alguns de vós é assim que ireis pensar quando fordes grandes. Contudo, não é assim que pensam os coiotes. Imaginai que sois coiotes, gostaríeis de deixar de viver? Alguns de vós, em vez de estarem a pensar na resposta à pergunta podereis já estar a pensar que não sois coiotes nem nunca o sereis, que os vossos pais não são coiotes, e por isso não vale a pena imaginar algo que nunca ireis ser.
De onde surge uma outra máxima:
Para alguns, a sociedade sem classes é aquela onde existe apenas a sua classe.
Estas sociedades sem classes ocorrem muito nos condomínios fechados, ou nas escolas privadas, onde as pessoas e os meninos são todos iguais. E onde à porta há um grande cartaz que diz:
– Aqui não entram coiotes.
E como os animais são muito brincalhões, então quando pertencem ao mesmo grupo acham muita graça uns aos outros, pois essa é uma forma de fazer parte do grupo. De certeza que já vos aconteceu comprar uma roupa igual à dos vossos colegas para vos sentirdes como eles. Pois é isso mesmo, nesse cartaz um outro animal do grupo logo acrescentará:
– Nem mosquitos.
E muitas outras coisas que lhes irá passar pelas cabeça, pois as brincadeiras não têm fim. Podeis, por isso, ter a certeza de uma coisa, o problema é colocar lá o cartaz a primeira vez.
Porque é que isso acontece?
Nas sociedades sem classes feitas apenas de animais da mesma classe os animais são muito felizes e andam sempre na brincadeira porque não precisam de pensar como será ser de outra classe.
Tudo para vos contar do à vontade do coiote na dança com os mosquitos. É uma forma um pouco estranha. Eu nunca tinha visto ninguém dançar assim. A Alzira mosquiteira envolve completamente o Desgracius, ficando este no meio com a galinha à sua volta. O coiote bate o pé três vezes, começando a dançar agitando os braços e abanando a cabeça dentro da Alzira de uma forma desregrada. Ainda que nenhum dos passos que dá sejam como o furão ensina, eles têm tanta sinceridade, são tão verdadeiros, que os mosquitos que fazem de Alzira sorriem surpreendidos com o Desgracius.
É um sorriso bem diferente do riso da formiga, e isso merece uns parágrafos. Posso ver nele surpresa e carinho. E digo-vos, meus meninos, é muitas vezes assim que começa um grande amor. Com certeza já vistes o amor. Provavelmente entre os vossos pais. Já mais improvável é terdes visto como ele surge, como inicia, como era antes do amor e depois do amor, dado que sois o seu resultado, ele tem de acontecer primeiro para vocês acontecerem depois.
Vou-vos então explicar o amor entre o coiote e os mosquitos. Talvez assim possais reconhecê-lo um dia mais tarde na vossa vida. Ou, pelo menos, anuir que os coiotes e os mosquitos também são capazes de amar. E mais, como ireis ver, o amor deles não incomoda pois é igual a todo o amor em todo o lado, mesmo o que acontece no condomínio fechado.
Como vos disse, primeiro os mosquitos sorriram com o à vontade do Desgracius, não estava ali para os enxotar, queria apenas se divertir. Depois invejaram-no. Como sabeis os mosquitos tinham medo de não ser aceites na viagem, dada a sua reputação. Por isso eram muito comedidos, temendo expressar o que sentiam. Como já vos deve ter acontecido quando entrais numa sala cheia de adultos que não conheceis. Ficais acabrunhados. Talvez a um canto, não é verdade. Sentis-vos ainda mais pequeninos que do que realmente sois. E eu sei que quando brincais vos sentis muito grandes. Mas nesta situação é assim que ficais, com medo de não estardes a proceder corretamente, de não tardes maneiras, como quem não sabe comer à mesa.
E então ali estava o coiote, o Desgracius, que nunca tinha andado na escola, que pouco comia, dormia na rua e muitas vezes passava fome. Ali estava o Desgracius a divertir-se, não parecendo se importar com mais nada. Isto, pode provocar inveja nos contidos, e os mosquitos estavam contidos. Lembrais-vos, os Amélia a dançar de cor, os Alzira também. E agora o coiote fazia o que queria. Por isso os mosquitos Alzira invejaram o coiote Desgracius. E depois, quiseram ser como ele, quiserem a alegria do coiote para eles. E é ali que surge o amor.
Os mosquitos envolvem o coiote que continua a dançar incansável e cada vez o envolvem mais densamente, sem deixarem de fazer de galinha, é verdade. Mas agora quando o coiote abre os braços, parece que é galinha a dar às asas. Quando o coiote abana a cabeça vê-se a crista da galinha a ondular de um lado para o outro. E então já não se percebe onde acaba o coiote e começa a galinha, ou, se quiserdes, onde acaba a galinha e começa o coiote. Sendo dois, são um e um só.
Isso é o amor. Por isso:
Na sociedade sem classes, todos, todos, todos, todos, mesmo todos, sejam eles coiotes, sejam eles mosquitos, podem experimentar o amor.
Quem não acredita no amor é a águia Samcia. Para esta águia o amor é um empecilho à realpolitik. O que disse a formiga sobre a realpolitik? Se bem vos recordais, que é um jogo de soma-zero. Ou seja, que em um ganha e outro perde. Agora deveis perceber a razão pela qual a águia não gosta do amor. A águia gosta da realpolitik, acha mesmo que é a única forma como o mundo funciona, não há outra. Reparem que o coiote e os mosquitos não tinham nada, e o amor fez com os dois ficassem a ganhar. Isso deixa a águia muito, mas muito incomodada.
Pelo que a águia, que parecia tão distante, tão reservada, quando, estando nos braços do leão Gaspar, viu o que se estava a passar entre o coiote e os mosquitos Alzira, não foi capaz de esconder o desagrado, dizendo:
– Pensam que ganham alguma coisa com isso.
Pois é, vou-vos contar um segredo. A águia já amou. Há muito, muito tempo, vivia ela nas montanhas. Era uma águia livre. Voava com as asas bem abertas, planando, fazendo oitos lá nos ares. Quem a via dizia:
– Não há melhor símbolo da liberdade do que a águia careca.
E não era um, nem dois, os que pensavam assim, era todo um povo. Por ser muito amada, era a águia feliz, e por ser uma águia feliz, amava intensamente o povo que a amava a ela.
Contudo, um dia, alguém veio lembrar que a Samcia era uma ave de rapina, que vivia do sangue dos outros, o que fazia com que tivesse uma moral duvidosa. Sabem quem foi essa pessoa? Foi o mais novo de todos, o benjamim, que frequentemente são os mais jovens que fazem as perguntas mais inesperadas, pois como estão a começar a pensar fazem as perguntas todas. Acho que já nesta história vos expliquei que por vezes saber as respostas impede-nos de fazer as perguntas.
E o que perguntou o Benjamim? Perguntou assim:
– Como podemos conciliar a liberdade com a rapina?
E de seguida propôs substituir a águia careca pelo peru selvagem como o animal que esse povo deveria amar, pois também tinha a liberdade por ser selvagem sem estar manchado pelo sangue.
Vou-vos dizer uma coisa acerca do amor. O amor é muito bom, até que alguém a quem amamos deixa de nos amar a nós. Sentimo-nos traídos. E foi assim que a águia se sentiu. Aquele povo queria trocá-la por um peru selvagem. E logo um peru, um animal vegetariano que de selvagem tem apenas o nome. Isso era insuportável para ela. Ficou amargurada, muito amargurada e cabisbaixa. O que não é nada bonito de se ver numa águia. Mas, quando finalmente resolveu levantar de novo a cabeça, decidiu que nunca mais na vida daria alguma coisa se não recebesse algo de igual valor em troca. Estais a ver onde surge o jogo de soma-zero.
Tudo isto ajuda a explicar a razão da presença da águia. Tinha ouvido falar do milagre anunciado da sociedade sem classes. Por isso mesmo tinha vindo, para mostrar que por muitas maravilhas que apregoassem, a sociedade sem classes seria sempre um jogo de soma-zero. Recordai-vos como ela sorria à conversa da leoa sobre não comer carne.
Pelo que podemos concluir que:
Alguns embarcam na viagem para a sociedade sem classes com o único objetivo de escarnecer.
Deveis ter ficado a pensar que os animais que matam outros animais não podem amar, nem têm lugar na sociedade sem classes. Contudo, tendes neste preciso momento, nos braços da águia o Gaspar, um carnívoro, que ama a sua rainha acima de todas as coisas.
Enquanto vai dando os seus atrapalhados passos nos braços da Samcia, o leão não consegue tirar os olhos da Felícia que vai repetindo o seu:
– Não acaba, não acaba.
Sente uma enorme alegria. Uma alegria antiga, como quando ouviu a Felícia cantar pela primeira vez. Tinha saído com uns leões amigos, sem a autorização do seu pai, o rei. Era o Gaspar um jovem, senhor de uma juba invejável, que vivia entediado com a vida regrada do palácio. Aquilo a que se chama “o protocolo”. Mesmo quando saía com os amigos, o leão não deixava de ser o príncipe herdeiro do trono e isso fazia com que fosse sempre tratado com muito respeito, com receio que o pudessem ofender ou magoar. Por exemplo, nunca o tratavam por Gaspar, mas sim por Vossa Majestade.
O Gaspar desconfiava que haveria um outro mundo onde as pessoas não se tratavam desse modo. Parecia-lhe mesmo que sempre que ele não estivesse presente os amigos agiriam de outra forma. Ou seja, não agiriam de acordo com o protocolo.
Já andava com aqueles pensamentos há bastante tempo quando, ao ouvir pela primeira vez o rugido da Felícia, se sentiu atirado para fora do protocolo. Parecia-lhe que o rugido era a ele dirigido e não começava com Vossa Majestade.
E recordava-se agora o leão daqueles tempos em que ele lhe sussurrava ao ouvido:
– Flis-flis.
E ela respondia na brincadeira:
– Tu és é Gagá.
Imaginem um súbdito dizer ao seu príncipe que ele é gagá. Mesmo que possa parecer um carinhoso diminutivo de Gaspar. Mas aquele rugido da Felícia conseguiu abrir as portas do Gaspar.
Enquanto dançava com a Samcia, o leão também recordou que naqueles tempos a Felícia ainda não era vegetariana e iam os dois incógnitos a um restaurante onde cada um deles comia um bem alto bife do lombo, ele à três pimentas e ela à café.
Talvez, pensou o leão, se tenha tornado vegetariana pois o meu pai apenas aceitou o nosso casamento se ela me tratasse por Meu Senhor. Disse-lhe o rei:
– Apenas se casares com uma plebeia pelo protocolo poderás fazer dela uma rainha.
E como o príncipe estava destinado a ser rei, e como também gostava muito da Felícia e não a queria perder, pediu-lhe que se lhe dirigisse a ele como Vossa Majestade. Suspeita o Gaspar que foi desde aí que a Felícia começou a deixar de comer carne.
Agora aqui nesta viagem para a sociedade sem classes, dançando com uma águia, o que nenhum protocolo permitiria, ouvindo a sua Felícia a rugir como se fosse a primeira vez, o leão Gaspar sentiu-se muito, muito feliz na sociedade sem classes.
A sociedade sem classes pode surpreender aqueles que dela à partida desconfiam.
Os cordeiros, que de início eram apenas espetadores, por algum receio do Carlos, depois do que tinha acontecido ao Leonel e ao Maurício, acabaram por ceder sibilar do guizo da Siza começando a formar pares. Tendo inclusive o cordeiro que estava de guarda à entrada do porão não resistido a começar a dançar com um outro que lhe disse:
– Vamos, que a vida são dois dias.
Vou-vos dizer uma coisa. Os cordeiros têm muito jeito para dançar. Nasceram para conduzir e serem conduzidos, acontecendo algo que nem o excelente plano no furão e do lobo conseguira fazer prever. Também Carlos e o Englês não resistiram ao sibilar da Siza dançando um com o outro e os restantes cordeiros que estavam no porão vieram para cima para acompanhar o baile.
Chegou então o momento esperado.
Quando passavam junto à entrado do porão o furão disse de novo:
– A dança está na pausa.
A pausa foi aproveitada pelo burro para se esgueirar para o porão, enquanto o Jeitoso retomava a instrução da dança, movendo-se por entre os pares, repetindo – um, dois, três, um dois, três, …
Chegado ao porão o Castanho libertou as galinhas e os cordeiros, regressando todos para cima recomeçando a dançar o Leonel com a Alzira, o Castanho com a Amélia e o Maurício juntou-se aos músicos. A Amélia ficou tão contente por estar de novo livre, que não há animal que não preze sua liberdade, que encostou agradecida a cabeça no ombro do burro dizendo:
– Meu herói.
O que entrou pelas longas orelhas do burro, esticando-as como nunca visto, e pleno de felicidade o Castanho aconchegou-se regalado nas penas fofas da galinha.
Foi então que aconteceu a situação mais incrível que possais imaginar. Nunca, nunca, numa viagem à sociedade sem classes se esperaria isto. O cordeiro Carlos, quando se apercebeu que as galinhas tinham fugido do porão em vez de chamar os seus cordeiros e fazer um discurso para os trazer de volta à razão e pôr tudo na ordem, encostou a cabeça no ombro do Englês e começou a chorar.
O que tem de extraordinário, podereis estar a pensar. Primeiro é bem estranho ver um cordeiro barbudo a chorar nos braços de outro cordeiro tão barbudo como ele. Segundo, é que a última vez que o Carlos chorou ainda era um miúdo pequeno. Depois disso jurou que nunca mais choraria, que chorar de nada servia, tinha era que mudar o mundo.
Assim, esta história que se está a acabar é a única história da sociedade sem classes onde o cordeiro Carlos chora e acaba sem verdadeiramente acabar a história, uma vez que ainda não se chegou ao destino.
Deveis estar um pouco desiludidos, esforçastes-vos por chegar aqui, que a história já vai longa e afinal a história não acaba. É como uma história que não tem moral, que a moral da história é um resumo que os meninos que têm a preguiça de pensar na história toda usam como se uma fosse uma cábula.
Eu, que depois falei com todos os animais sobre a história da sociedade sem classes, foi o burro aquele que me pareceu a melhor ter entendido. Quando lhe perguntei que conclusão tirava desta história, respondeu-me ele assim:
– Sim, não podemos chegar à sociedade sem classes, pois se assim fosse o leão deixaria de comer carne, o lobo deixaria de gostar de cordeiros e o furão de galinhas. Também os bois estariam condenados, pois apenas as vacas poderiam casar com as vacas. Como isso não pode acontecer, o importante é a viagem para a sociedade sem classes, mesmo sabendo que nunca se lá se chegará.
E arrematou o burro Castanho dizendo:
– Eu conheci a galinha Amélia e estou muito feliz.
Afinal pode haver vantagem em fazermos viagens na desportiva. Faço, por isso, minhas as palavras do burro.
Não é por ser impossível chegar à sociedade sem classes que não nos devamos pôr a caminho.