O Homem que Vivia com Duas Formigas

Esta é uma história de um homem que vivia com duas formigas. Bem, na realidade, é assim que a história acaba, porque no início ele achava que vivia sozinho.

Vivia numa casa que não era grande nem pequena. Era térrea. Talvez pequena para casa térrea, mas se não fosse térrea, se fosse, por exemplo, um apartamento, até se poderia dizer que era jeitosa. Tinha uma sala, dois quartos e uma cozinha, para além da casa de banho, claro, que ninguém consegue imaginar uma casa sem casa de banho.

A porta de entrada dava para um pequeno jardim onde havia um portão que dava para a rua. E não fiquem logo a pensar que o jardim era grande e bonito. Quando se diz a palavra jardim é isso que nos vem à cabeça, eu sei. Por isso estou a alertar-vos, era mesmo muito pequeno e quanto a ser bonito já lá vamos, que isto de ser bonito não é tão simples como parece.

Se havia alguma coisa que o jardim tinha, era um canteiro. Sim, um canteiro. Um pedaço de terra rodeado por um pequeno muro por todos os lados. Pequeno de um palmo e meio, mais coisa menos coisa.

O muro separava o chão de cimento da terra que ficava dentro do canteiro. Terra só mesmo dentro do canteiro. E isso era uma coisa que o homem levava muito a peito. Essa era, pelo menos assim pensava, a principal razão pela qual havia o muro. Evitar que sujasse os sapatos de terra.

O homem tinha pavor, às vezes até se zangava com ele mesmo, de levar terra agarrada aos sapatos para dentro de casa. Assim se percebia sempre que entrava em casa. Esfregava os pés no tapete, uma vez, duas vezes, três vezes, às vezes até quatro vezes, colocando um pé de cada vez à frente e puxando-o com força para trás, também à vez. Fazia isso com tanta energia que abanava a cabeça em consentimento, concordando consigo mesmo, como que dizendo para si, é assim que deve ser, ter os pés bem limpos antes de entrar em casa.

Por isso lá estava o muro, para evitar que a terra passasse do canteiro para o chão de cimento e deste para os sapatos. E era só para os sapatos do homem, que ele não era de receber muitas visitas. Nem muitas, nem poucas, pelo menos durante a duração desta história não nos apercebemos que tenha recebido alguma. Mas, a sermos verdadeiros, também não podemos jurar que não as tenha recebido.

Reparem que enquanto estiverem a ouvir esta história, que é tão grande que não consegue ser contada num único adormecer, também tiveram de fazer outras coisas, como lavar os dentes à noite, dormir, acordar, tomar banho e o pequeno-almoço, lavar os dentes de manhã, e todas as outras coisas que se fazem para além de contar e ouvir histórias. Imaginem agora que quando não estão a ouvir a história há coisas que acontecem que vocês não sabem pois estavam a fazer outra coisa. Nesse caso não podem jurar que elas não tenham acontecido. Não é verdade?

Assim, também eu não vos posso garantir que o homem não tenha recebido visitas. O que vos posso assegurar, isso sim, é que enquanto estive a escrever esta história, ele não recebeu visitas, mas pode ter recebido quando eu não estava a escrever. Imaginem que recebeu uma visita quando eu estava a dormir? Não vi, não posso contar, é como se ele não tivesse sido visitado. No entanto uma coisa vos prometo, a história tem tudo o que eu vi enquanto estava a escrever a história, nem mais nem menos. Podeis estar certos de que esta é uma história vista, não é uma história inventada.

E na verdade até teve visitas, porém não foram bem visitas, como vos irei contar. Não daquelas que se convidam para vir almoçar, ou jantar, e depois ficar na conversa à volta da mesa sem fazer nada a não ser falar, bebericar e mordiscar mais alguma coisa, que quando chega a parte da visita em que já estamos de barriga cheia, o que se mordisca e beberica é só para ajudar a puxar por mais uma palavra.

Ah, já me estava a dispersar e esqueci-me de dizer uma coisa sobre o muro, estava pintado de branco, e pode parecer que não, mas é muito importante para a nossa história. Porquê? Bom, não dêmos nós passos maiores do que a perna. O importante agora é só saber que o muro estava pintado de branco. Uma coisa de cada vez, e só quando estiver tudo dito teremos a história toda contada.

Creio que, com o até aqui contado, já estareis convencidos que o jardim, ou melhor o canteiro era pequeno. Vamos então agora ver se era bonito.

Como muita coisa nesta história, era e não era. Era, pois, tinha uma roseira, ainda que com espinhos, que chegada uma certa altura do ano dava uma rosas que se não eram muito grandes, nem sequer muito bonitas, eram, isso sim, muito perfumadas.

Tão perfumadas que muitas vezes o homem abria a porta apenas para deixar entrar em casa o bom cheiro das suas rosas. Isso só acontecia num pequeno período do ano. Que as rosas antes de abrirem quase não cheiram, só mesmo lá aproximando o nariz se consegue sentir alguma coisa, e não muito, uma frescura, mais uma promessa de cheiro do que outra coisa qualquer.

Mas as rosas desta roseira não eram de faltar às suas promessas, isso é que não, e quando chegava a altura desabrochavam com um cheiro de encher o coração a qualquer um.

Bem forte, podeis acreditar, que eu próprio, que apenas estou a contar esta história, e nunca estive na casa deste homem, o consigo sentir. Bastou-me vê-lo sentado na soleira da porta, ver a satisfação no seu rosto a encher os pulmões, que fico logo com as narinas cheias de odor a rosas.

Como é que umas rosas tão pequenas podem libertar um cheiro tão forte? Se calhar é porque as rosas são como os meninos e as meninas, não se medem aos palmos.

Então, deveis estar agora convencidos o jardim era bonito, pois tinha uma roseira. E, no entanto, a maior parte do ano era apenas um tronco rugoso, uma pequena árvore inútil no meio daquele canteiro.

Quem não souber o que são rosas, ou sabendo o que são nunca tivesse sentido o seu intenso cheiro, ou, como eu, visto a satisfação na cara homem, e se por acaso passasse em frente à casa térrea, naquela estreita rua de casas térreas de um lado e um barranco de pedra do outro, quem assim passasse em frente à casa térrea e deitasse os olhos para o pequeno canteiro, nas alturas do ano em que a roseira nem um despontar de rosa tivesse, pensaria, para que é que serve um canteiro vazio só com este feio tronco descamado. Pensaria, e seguiria o seu caminho sem mais pensar no assunto.

É assim fácil perceber que quem mais dava valor à roseira era o homem que já tinha cheirado as suas rosas e que sabia que se esperasse, quando chegasse a primavera, dos descarnados ramos voltariam a brotar as perfumadas pequenas flores.

Gostava, pois, da roseira todo o ano. Tanto, que dava consigo a falar com ela. Estava a roseira toda despida de inverno, e ele vendo-a triste, recordava-lhe as belas flores que tinha dado na última primavera. Dizia-lhe até de uma ou outra, de que se recordava melhor, e de que suspeitava seria responsável por um odor mais penetrante, que tocava mais fundo no nariz.

É que o homem se tinha tornado num especialista em cheiro a rosas. Pelo menos ele assim pensava. Achava que conseguia distinguir no cheiro que lhe entrava pelo nariz as rosas que estavam na roseira.

Dizia assim: ah, aqui nota-se muito a Madalena, um pouco menos a Gertrudes e a Rosália hoje não deve ter apanhado a humidade necessária. Esta noite esteve menos fresco e a Rosália está virada a poente, coitada, fica muito seca ao fim do dia, pois o sol é muito forte. E lá ia ele correr com um pouco de água na concha das mãos lançar umas gotas sobre as pétalas da Rosália.

Era assim mesmo, assim que os botões despertavam na roseira logo lhes atribuía um nome. Quase sempre nomes de meninas. E os preferidos dele eram mesmo estes, Madalena, Gertrudes e Rosália, ainda que usasse muitos outros, como Isabel, Cristina ou Fernanda. Nomes de meninos também, usava, um Carlos ou Ambrósio, ouvi eu serem pronunciados, mas, não sei porquê, era menos frequente.

Às vezes usava nomes dos anos anteriores, quer porque o botão rebentava muito próximo do lugar onde tinha rebentado uma outra rosa de boa memória, e nesse caso considerava ele que foi como que uma reencarnação, ou quando a forma do minúsculo botão lhe recordava um outro a que atribuiu píncaros olfativos e a repetição do nome era como uma prova de esperança.

Já sabemos tanto sobre a roseira e tão pouco sobre o que deverá ser o tema principal da história. Até porque se o título é o homem que vivia com duas formigas, nele nem sequer vem a roseira e já vamos em várias páginas da história e pouco mais versámos do que sobre a roseira, e do homem só sabemos do seu gosto por ela. Vamos lá então.

O homem era alto e magro, como um avô. Não como todos os avôs, mas como os avôs altos e magros. Ainda assim, se tiverem avôs que não são altos e magros, mas se os imaginarem altos e magros são capazes de ficar com uma boa ideia de como ele era.

E as formigas? Sois capazes de perguntar. Pois é, sobre as formigas ainda não disso nada, embora já tenha dito alguma coisa. Recordais-vos quando eu contei que o muro do canteiro era branco?

Vamos lá ver então, a cor do muro é importante pois foi aí que pela primeira vez o homem deu por elas. Duas pintinhas andantes a seis patas sobre o branco do muro. Que elas já há muito andavam pela roseira, mas não se dava por eles por entre os troncos enrugados. E o homem, também era falto de vista.

Estou sempre a dizer o homem, o homem, mas ele tinha um nome e já é tempo de dele saberem. O homem chamava-se Manuel. Pelo que a história se poderia intitular: Manuel, o homem que vivia com duas formigas. Mas uma vez que já vamos nesta parte da história acho que não vale a pena voltar a atrás para só para acrescentar o nome, uma vez que chamar-se Manuel pode ser importante para ele, mas para a história não faz muita diferença, até se podia chamar Eduardo que a história tal como contada a vocês seria exatamente a mesma.

Estava então o Manuel a cuidar da sua roseira, quando lhe parece haver dois grãos de terra bem preta a sujar o muro branco. Fica logo aflito, por suspeitar que se ali estão esses grãos quer dizer que alguns outros terão passado para fora do canteiro e até, imagine-se, se calhar já estão agarrados aos seus sapatos.

Muito rapidamente levanta um dos pés para ver se estão sujos de terra, e tal foi a brusquidão que se desequilibra e cai com o traseiro no tapete de entrada. Podem bem imaginar o que deve ter doído, mas ainda assim não foi muito mau, pois podia ter sido pior. Podia não ter caído com o traseiro. Podia ter batido com a cabeça em algum lado. Podia ter podia ter partido um braço. Podia ter partido uma perna. Podia ter magoado o tornozelo. Podia ter-se estatelado todo no chão. Sei, lá, podia ter acontecido tanta coisa, mas teve o tapete a amortecer a queda, e caiu com o traseiro, que mesmo para um homem magro, é bem melhor do que cair de uma outra forma qualquer. E depois houve uma outra coisa que o ajudou muito. Os pés ficaram ao fundo dos dois pequenos degraus, pelo que ficou quase como se fosse sentado.

E foi sentado que logo estranhou algo, olhou para o muro e os dois pequenos grãos de areia já lá não estavam. O muro parecia tão branco e imaculado como sempre. Ficou um pouco perturbado. O Manuel sabia que já via um pouco mal, mas ver mal é não conseguir ver, não é ver o que lá não está. Isso terá um outro nome, que até pode ser imaginação.

Será que ele imaginou os dois grãos de areia? Será que o Manuel vive tão preocupado em não levar terra nos sapatos para dentro de casa que já começou a imaginar aquilo que não quer que aconteça? Como às vezes nos acontece nos nossos pesadelos, que são sonhos sobre o que não queremos que nos aconteça?

Estava o Manuel nesta atrapalhação, dorido do traseiro, assustado com poder estar a ver coisas que não existem e preocupado se isto não seria um pesadelo, quando viu de novo a duas pitinhas pretas. Só que agora já não estavam no mesmo sítio. Estavam um pouco mais para a esquerda no muro. Pelo menos era o que lhe parecia, que tinha começado a duvidar do que via.

Com algum sacrifício lá se levantou e foi a casa buscar os óculos de ver ao perto. Quando regressou, chegou ao pé do muro, pôs-se de cócoras com algum esforço, que lhe doíam os músculos e os ossos, e colocou os óculos, e lá estava o muro tão branco e limpo como sempre o gostou de ver.

Mais preocupado ficou. Se com óculos não via nada era porque então via coisas quando não os tinha. Estava ele com as mãos nos joelhos, um pouco aborrecido, a dizer para consigo: Ai, Manuel, Ai, Manuel, já não és o que eras antes. E começou a ficar triste. O que até pode parecer um pouco estranho, então ele que o que tinha mesmo receio era de levar terra dos sapatos, ficava triste por não haver terra. As tristezas são assim, tanto podem desaparecer com uma alegria como com outra tristeza maior do que a anterior.

Qual não foi o alívio, quando viu de novo os dois pontinhos e agora percebia que eles se movimentavam. Tinham passado para o lado e dentro do muro, por isso as tinha deixado de ver, mas agora tinham regressado e estavam mesmo à sua frente no cimo do muro. Que dasafogo grande que ele teve, afinal não andava a ver coisas, eram apenas duas formigas que para aqui andavam.

Descansado estava quando uma das formigas, aquela que estava à esquerda, levanta a patinha direita mais à frente, coloca por cima da sua boquinha desdentada e diz – Boa tarde!

A primeira coisa que o Manuel fez foi olhar para os lados e para trás. Não é que passasse muita gente naquela rua, mas às vezes, mesmo desconhecidos, era normal darem a saudação. Boa tarde, se fosse de tarde, bom dia de manhã, e até à noite, se estivesse a apanhar a fresca de uma noite de verão na soleira da porta lá ouvia uma boa noite. Sendo que a boa noite, nas noites de verão se diz que uma forma diferente do bom dia e do boa tarde, diz-se sussurrado como a aragem, que a fresca é tão bem-vinda que ninguém se acha com direito de a incomodar.

Por isso nunca vos admireis se fordes à noite aos bairros onde vivem as pessoas como o Manuel, feitos de pequenas casas térreas em ruas estreitas, e estranhardes de ouvir tão espaçadamente pessoas que de dia falam de corrida, cheias de vontade de dizer, e de noite parece que o que dizem é mais uma desculpa para ainda não irem para dentro. Essas pessoas não estão a dizer, estão a apanhar a fresca.

Mas o que o homem ouviu foi boa tarde. E uma boa tarde bem ressoante, como seria bem capaz de dar uma formiga, se as formigas soubessem falar. Pois é, não é que esta formiga sabe falar. E que voz, que profundidade. Se deste conto um dia fizerem uma ópera esta formiga seria um baixo. Já a outra, sim a outra formiga também fala, homessa, é um incontestável soprano.

Para já o Manuel ainda só ouviu a formiga baixo, e podeis ter a certeza que já foi mais do que suficiente para ficar bem atrapalhado, depois de se certificar que a saudação não vinha de ninguém em volta, mas sim da pequena formiga à esquerda. Boa tarde – não conseguiu evitar responder enquanto aproximava o olho esquerdo em direção da formiga falante, para ter mesmo a certeza do que estava a ver, se não mesmo a ouvir.

– Ora cá estamos nós – diz a outra, sim a da voz soprano, que se era mais tímida, uma vez começada a conversa revelava-se bem mais espevitada e cultivadora de uma boa conversa, como iremos ver. O Manuel gira agora levemente a cabeça trocando do olho esquerdo para o olho direito aproximando-se da nova formiga faladora.

E o que viu o Manuel depois destas duas auscultações. Duas formigas, evidentemente. Uma baixo e a outra soprano. A soprano, a da direita, era indisfarçavelmente mais vaidosa. Via-se que tinha cuidado com a pele, que era muito luzidia, enquanto a da direita já não, era um pouco mais baça, um bocadinho até mais anafada para o que se espera de uma formiga.

Sim, que as formigas são insetos incansáveis, muito trabalhadoras, sempre a labutar, nada dadas a momentos de reflexão, que levam ao acumular de gordura, ou a observar-se ao espelho, que leva aos cuidados com a pele, pelo que o Manuel ainda mais surpreso ficou, para além de falarem não pareciam bem formigas.

Bom, de facto nunca tinha dado muita importância às formigas. Não se metia com elas, a não ser quando começavam a ficar incomodativas, e nessa altura ia buscar o pó branco que colocava nos cantos das paredes, deixando de as ver. Por isso sempre lhe pareceram todas iguais.

Se calhar, pensou o Manuel, é quando começamos a falar com as pessoas que reparamos como elas são. As formigas parecem todas iguais porque não falamos com elas. Agora, bastaram dois dedos de conversa e já acha uma delas vaidosa e a outra reflexiva.

– Então não sabes dizer nada mais do que bom dia? – pergunta a formiga soprano, vendo-o assim estático a olhar, e depois acrescenta baixinho para o lado, começando a retroceder – queres ver que ele já começou a pensar no pó branco?

A formiga baixo, que era menos dada a alarmes, até porque era mesmo capaz de ler o pensamento, responde – por acaso até pensou, mas ele está é admirado com o nosso aspeto. A mim acha-me anafado e a ti vaidosa.

– É sempre assim, estes preconceitos com as formigas – continua a sussurrar a soprano – ora não nos ligam nada, mantendo-nos à distância com o pó branco, mas uma vez que começamos a fazer parte do dia a dia deles ficam logo cheios de opiniões, a dizer que tu és isto ou és aquilo.

Mas agora o Manuel estava era admirado de ser tuteado, não era assim que o tratavam. Estava acostumado a ser tratado por Sr. Manuel. Como está o Sr. Manuel. Bom dia, Sr. Manuel. Boa tarde, Sr. Manuel. Muito menos por pirralhos, e ainda muito, muito menos por formigas.

– Este ano iremos ter belas rosas! – disse com autoridade a formiga baixo, numa tentativa de desanuviar os pensamentos e sussurros que não deixavam avançar a conversa. Ao que a soprano, percebendo a estratégia da outra logo acrescentou – Sem dúvida nenhuma, poderão não ser muito elegantes, mas perfumadas acho que este ano será como não há muito!

O Sr. Manuel, vamos tratá-lo por Sr. uma vez que sabemos agora que é assim que gosta de ser tratado, não resistiu a imaginar-se sentado na soleira da porta, na próxima primavera, com o cheiro das rosas.

Aproveitando esta trégua, a formiga baixo resolveu iniciar as apresentações – Antes de mais, deixa-nos apresentar, eu sou o Henrique e esta é a minha esposa, Henriqueta. Suponho que sejas o Manuel, o dono desta casa e desta linda roseira. Já há uns tempos que estávamos para falar contigo, mas ainda não tinha havido oportunidade.

E disse tudo isto, de seguida, de forma a não ser interrompido e também para mostrar que uma formiga para além de palavras soltas, consegue fazer frases completas, e até mesmo raciocínios.

Como palavra puxa palavra, o homem não resistiu a perguntar – Como é que sabem o meu nome e que eu gosto do odor das rosas?

– Ora então, já há muito tempo que somos teus vizinhos, vivemos aqui junto à roseira – apressa-se a responder a Henriqueta – temos observado com muito agrado como tratas dela, até tenho comentado com o Henrique, o Manuel é um verdeiro apreciador de rosas – acrescenta não evitando um pestanejar e um ligeiro movimento da cabeça para a direita.

– Embora, é mais pelo que vemos da tua satisfação, que nós não ligamos muito ao cheiro das rosas, isso é mais para abelhas e zangões – diz o Henrique – gostamos sim, quando está mais calor, de passear pelas pétalas a abrigarmo-nos lá mais abaixo, onde está fresquinho.

– Nunca deste por nós? – pergunta a Henriqueta que sempre foi uma formiga muito curiosa, e até às vezes um pouco intrometida.

– Não, nunca tinha reparado que a roseira tinha formigas – responde o Sr. Manuel tentando puxar pela memória que já não é o que era.

– É o que que tenho dito à Henriqueta, o Manuel não sabe que nós existimos, ele só tem olhos para as rosas, mas ela insistia que não era verdade, que já algumas vezes tinha reparado em nós, mas que o Manuel era tímido.

– Não, peço desculpa, nunca tinha reparado – responde o Sr. Manuel.

– Pedir desculpa a duas formigas, ora essa, deixa-te disso, agradecemos muito, mas não estamos habituadas – diz a Henriqueta, meio a sério, meio a brincar, ao que o esposo lhe dá um pequeno toque com a última perninha do lado esquerdo a avisá-la para não ser tão desbocada. – Então, não é verdade – atira-lhe a Henriqueta afastando a parte final do corpo para a direita, para não ficar ao alcance de Henrique e assim ter a liberdade para dizer o que lhe apetece.

– Ora, não ligues à Henriqueta – interrompe o Henrique – ela está sempre na brincadeira. – adianta, olhando para ela com uma mistura de carinho e admiração, o que deixa a Henriqueta mais luzidia do que nunca, muito satisfeita e espevitada para continuar.

– Eu é que tenho dito ao Henrique, temos aqui um vizinho, que parece ser uma excelente pessoa, tão cuidadoso com a sua roseira, e nunca nos apresentámos, vivemos aqui paredes-meias e nada, nem uma conversazinha, e de certeza que ele gostaria de falar connosco acerca da sua roseira.

– Que poderíeis vós dizer-me acerca da roseira, se nem sequer vos interessa o cheiro dela? – pergunta o Sr. Manuel, que embora seja mesmo falto de memória nunca se esquece do que lhe interessa.

– Antes de mais, uma palavra de cautela – responde o Henrique, com a dicção ensaiada de quem já há algum tempo tem algo para dizer – peço desculpa, e espero que não leves a mal, – continuou exatamente como tinha planeado por forma a atingir o seu objetivo sem ser inoportuno – mas não é por mim, é mais pela minha Henriqueta, que por vezes é um pouco distraída, que eu bem lhe digo, quando o Manuel se aproximar da roseira tem cuidado para onde ele vai, que ele vê pouco, e pode sem querer aleijar-te.

– Mas pisei a Henriqueta? – interrompe preocupado.

– Não, pisar geralmente não é problema, pois nós somos tão pequenas que só se esfregares os pés com força é que nos poderias magoar. Por isso vamos sempre à volta do tapete.

– Ah, sim? – interroga-se o Sr. Manuel, não muito satisfeito por saber que as formigas lhe entram em casa.

– Não se preocupe, – apressa-se a tranquilizar o Henrique – se te entrámos em casa foi apenas uma ou duas vezes, se tanto, até mais por curiosidade do que por necessidade. Mas não era isso que lhe queria dizer – procurando retomar o fio à meada, que de tanto ensaiada não estava preparada para improvisos – recordas-te da Rosália de há dois anos?

– Sim, claro que sim. – se há coisa que o Sr. Manuel não se esquece é das Rosálias, uma vez que é muito criterioso na atribuição de nomes e Rosália é sempre atribuído à rosa mais promissora de cada ano.

– Pois, se calhar também te ocorre que num fim de tarde mais quente lhe deitaste uma mão cheia de água mesmo para o meio das pétalas.

– É possível, às vezes faço isso, mas, sinceramente não tenho ideia de ter necessitado de o fazer há Rosália de dois anos atrás.

– Sim, compreendo perfeitamente, eu logo disse à Henriqueta, olha que de certeza não foi por mal, ele é um excelente vizinho, todo este tempo aqui e não lhe temos nada a apontar.

– Aconteceu alguma coisa à Henriqueta? – aproxima o olho da formiga à direita para detetar alguma mazela.

– Um rico banho, isso é que foi. – apressa-se a Henriqueta a responder, esquecendo as várias vezes que o marido lhe pediu: “Deixa-me levar a conversa até ao fim, depois podes dizer o que quiseres, mas não queremos que o Manuel fique melindrado connosco, que até aqui tem sido uma excelente vizinhança.”

– Peço imensa desculpa. – diz com sinceridade.

– Ora, ora, deixa-te disso, a Henriqueta é que devia ter mais cautela, que nós bem sabemos que o Manuel por causa das suas rosas não vê mais nada. – Que o Henrique é esperto e sabe que um pedido de desculpa recebido com um “ora essa” fica muito mais valorizado.

– Bem, mas as rosas também não são tudo no mundo. – Não consegue a Henriqueta conter-se, revelando alguma insatisfação.

– Não lhe ligues, que ela é mesmo assim, – procura o Henrique reparar os estragos soltando de propósito uma sonora gargalhada de apenas dois soluços – Oh, querida, sabes bem que para mim és a melhor das rosas. – vira-se agora para a Henriqueta reparando os estragos feitos com a reparação anterior e colocando-lhe duas patinhas em cima, procurando trazê-la a si, enquanto Henriqueta faz um ligeiro movimento de se afastar com as patinhas traseiras, embora deixando-se ficar no consolo do abraço.

O Sr. Manuel ficou pensativo, sem saber bem o que dizer. Se por um lado lhe pareceu, pelo tom, muito sincera a prova de amor do Henrique à Henriqueta, por outro ficou com dúvidas, uma vez que as formigas tinham dito que não apreciam o cheiro das rosas. Por isso, dizer que és a melhor das rosas não significa nada. A não ser que o Henrique estivesse a falar para ele e não para a Henriqueta.

Bom isto não faz muito sentido. Pensou o Sr. Manuel. Nem as formigas, nem eu estar aqui a tirar ilações sobre manifestações de afeto entre formigas. Será que é mesmo assim? Será que estou mesmo a falar com formigas? Se calhar estou a dormir.

Foi isto que pensou o Sr. Manuel. E se vos o digo não é porque eu esteja dentro da cabeça do Sr. Manuel, é pela cara dele, de cócoras, de óculos de ver ao perto, de olhos colocados no muro do canteiro, mas agora já nada vendo, tão baralhado andava com os seus pensamentos.

E não é que quando voltou a abrir os olhos com olhos de ver, o Sr. Manuel bem procurou pelo Henrique e a Henriqueta e nem com o mais leve rasto deu das duas formigas. Quanto mais abria os olhos, quanto mais aproximava a cara do muro, quanto mais procurava de um lado e do outro do muro, mais no coração ia crescendo uma espécie de tristeza.

Eram de facto duas tristezas e por estranho que pareça não fazia muito sentido ter as duas ao mesmo tempo. É primeira devia-se a pensar que já não devia estar bom da cabeça, pois as formigas não falam e muito menos falam os humanos com as formigas. A segunda era exatamente o contrário, estava a começar a gostar do Henrique e da Henriqueta, achava-lhes graça, eram um casal bem simpático, e se agora fosse tudo apenas fruto da imaginação dele, então era como se tivesse perdido dois bons amigos.

– Leva-nos a dar uma volta – ouviu a voz de Henriqueta, mas não estava no muro.

– Estamos aqui, aqui em baixo – disse o Henrique.

Em baixo, onde? – perguntou o Sr. Manuel olhando para o chão.

– Eh, eh, não nos deves estar a ver – riu-se e Henriqueta – preto no preto é pior do que preto no branco – acrescentou.

– Nos sapatos, nos sapatos – ajudou o Henrique.

E foi então que o Sr. Manuel viu em cada uma formiga em cada um dos sapatos mesmo na parte de cima.

– Vá, lá, leva-nos a dar uma volta – insistiu a Henriqueta.

– Uma volta como?

– Então, pode ser só uma volta ao canteiro, para ver como é. Já tantas vezes disse ao Henrique que seria muito giro se o Manuel nos levasse a cada um no seu sapato. Ia ser como uma corrida em que nos ultrapassaríamos e cada passo.

– Sim, não custa nada, vamos lá dar uma volta – concordou, feliz de poder voltar a conversar com eles.

– Então deves colocar ambos os pés lado a lado na linha de partida, quando dizermos partida, começas a andar – disse a Henriqueta, que nestas coisas de festas e corridas era sempre ela que tomava a dianteira.

E assim foi. O Sr. Manuel colocou os pés lado a lado, tacão com tacão, biqueira com biqueira. As duas formigas colocaram-se no peito dos sapados, as duas viradas para a frente em posição de preparação para partir. Disse, um, dois e, e prolongou o e, prolongou mesmo bastante o e, e três, e começou a andar.

Não é que assim que se deu a partida as duas formigas desataram a correr às voltas no topo dos sapatos fazendo grande algazarra quando um sapato passava para a frente do outro para dar o passo. E quando mais riam à gargalhada era quando no pé que passava à frente ia a correr a formiga para trás, enquanto no sapato ultrapassado ia a outra formiga a correr para a frente. Sempre que isso acontecia ouvia distintamente o Henrique gritar ofegante, ganhei, ganhei, quer fosse ele a correr para a frente ou para trás.

– Estás a ver que tinha razão – disse o Henrique assim que terminou a volta.

– Pois é, o Quiquinho não perde uma oportunidade para mostrar que é o mais inteligente – responde a Henriqueta com voz de falsete, ainda afogueada da corrida e com uma pequena toalha nos ombros que o Sr. Manuel não percebe de onde pode ter surgido.

– Estão a falar do quê? – não resiste a perguntar.

– Então, de uma aposta que fizemos, eu apostei com a Henriqueta que é possível passar para a frente estando a correr para trás, como ficou demonstrado nesta corrida.

– E ele a dar-lhe – responde esfregando o pescoço com a toalha – não lhe dê corda, que quando chega a esta fase não se cala – continuou esfregando, satisfeita, agora as costas.

O Sr. Manuel ficou pensativo, pensativo, e resolveu vir em apoio da Henriqueta, sem sequer pensar que se poderia estar a intrometer numa história entre formigas, que ele até há bem pouco tempo nem imaginaria que conseguiriam falar.

– Também não era necessário organizar uma corrida tão complicada para mostrar que se pode passar para a frente correndo para trás.

– Ai, não? – pergunta o Henrique, sentindo-se picado.

– Não, pois não. – insiste o Sr. Manuel.

– Então como é?

– Bom, se todos os participantes correram para trás em algum momento os mais lentos são ultrapassados pelas mais rápidos, e nesse momento quem vai a correr para trás passa para a frente.

– Ah, mas assim até os que ficam para trás estão a correr para trás – procura o Henrique discordar.

– É verdade, mas não era essa a aposta, se é que eu percebi bem, a aposta era sobre ser possível passar para a frente estando a correr para trás, o que é verdade no exemplo que eu dei, não disse que era necessário alguém estar a correr para a frente.

– Não faz muito sentido uma corrida para a frente com toda a gente a correr para trás – insiste o Henrique.

– Foi exatamente o que pensei quando vos vi a correr nos meus sapatos, pensei eu, mas por que razão não estão sentadinhos a disfrutar da viagem, mas afinal era uma aposta. – e ficou a pensar como as apostas podem tornar as corridas numa grande trapalhada. Corre-se para ser o primeiro a chegar a uma árvore e poder colher o fruto mais delicioso, mas quando se aposta o fruto da corrida está na aposta. Mas resolveu nada disto dizer, pois sabia pouco da psicologia das formigas, isto é, como é que elas pensavam, seria, portanto, melhor guardar alguma cautela, até se sentia arrependido de ter levantado a questão.

– Desculpa, insistir, mas para mim, essa corrida para a frente feita com todos a correr para trás não faz sentido nenhum, – voltou à carga o Henrique com um indisfarçável mal-estar, o que percebi por estar com as patinhas todas hirtas e abanar apenas muito rigidamente a cabeça alçada – na minha corrida os teus sapatos iam a andar para a frente, o que marcava claramente o sentido da corrida.

– Explica lá isso melhor – não resistiu o Sr. Manuel, vendo-se posto à prova.

– Então, imagina uma terceira formiga que observa a corrida sem antes lhe ter explicado nada. Na corrida que eu inventei ela consegue acertar para que lado se está a correr, mas não na tua em que tudo corre para trás numa corrida para a frente – responde o Henrique, após pensar um momento e visivelmente satisfeito como o resultado de ter puxado pela cabeça.

Se não perceberam bem o que o Henrique disse, não se preocupem, é normal. Quando ouvimos falar um professor estamos com atenção, pois sabemos que os professores dizem coisas importantes, mas com uma formiga é bem frequente que se esteja menos atento, às vezes até se pisam sem querer. Eu próprio tive de ler três vezes para ficar com a certeza do que tinha ouvido, a primeira pois não percebi logo, a segunda para entender e a terceira para ter a certeza de que tinha saído da boca de uma formiga.

Mas não vale a pena vocês voltarem atrás para ler de novo, eu explico.

Então, o Henrique, como não gostou do exemplo do Sr. Manuel, e estando em desacordo com ele, sugeriu arranjar uma outra formiga para dar a sua opinião e resolver o problema. Só que, achando ser óbvia a conclusão a que esta chegaria nem precisou de a chamar, bastou dizer qual era a conclusão. E a conclusão é tão fácil que a ela não só chega a terceira formiga, como até vocês, se estiverem com atenção.

Então, é assim. Imaginem que não estavam a ouvir a história e apenas a ver a corrida. Como imaginam isso? Bom, imaginem que entraram na história a meio, como quem acaba de ligar a televisão e começa a ver um filme depois de ele ter começado e sem saber o que aconteceu antes. Num caso veem as formigas em cima dos sapatos do Sr. Manuel. No outro caso veem as formigas a correrem todas para o mesmo lado. E se agora vos perguntar para onde estão a correr as formigas, o que respondem em cada um dos casos?

Ah, já perceberam o que o Henrique quis dizer!

Admirados? Pois, também assim ficou o Sr. Manuel que olha muito atentamente para o Henrique. Nunca deu muita importância às formigas. Elas andam em linha, sempre nos mesmos carreirinhos, pensou, e se é verdade que trocam umas palavrinhas quando se cruzam, nada se compara a estar duas, que têm um imenso palrear. E isso não é o mais surpreendente, o mais inesperado é como falam.

Felizmente que a história não é feita apenas dos pensamentos do Sr. Manuel, que se podem tornar muito aborrecidos, como se calhar se estão a sentir neste momento. O Sr. Manuel pensou isto, o Sr. Manuel pensou aquilo… E ação? Não há ação? A corrida já aconteceu há tanto tempo e estamos aqui na história sem acontecer mais nada.

A nossa sorte, e desta história, para não ser muito aborrecida, é que termos estas duas formigas brincalhonas que gostam de fazer apostas e adoram discutir sobre quem ganhou e quem perdeu, mesmo que o Sr. Manuel, talvez devido à idade, venha colocar um pouco de água na sua fervura.

Não sei se repararam como no decorrer da história as duas formigas se foram tornando diferentes do que pareciam ser no início. Se antes da corrida, o Henrique era muito ponderado, sempre atento à sua Henriqueta faladora, depois da corrida era o Henrique que não se calava, sendo até um pouco refilão e ofendido com a sugestão do Sr. Manuel, enquanto a Henriqueta pouco mais fez que ficar calada. Por que será?

A formiga é a formiga e as suas circunstâncias. Arrisco-me a responder-vos, ainda que suspeito poder ser o primeiro a dizer tal coisa. Sabeis o que são as circunstâncias? Fui ao dicionário e diz assim: “condição do momento presente”.

Então quer isto dizer que as formigas mudam conforme as condições do momento presente? Quais foram então as condições?

Primeiro estavam a pedir ao Sr. Manuel para ter cuidado quando pusesse água nas rosas, pois podiam afogar a formiga que estivesse lá dentro, e depois estavam entusiasmadas com uma aposta em cima dos sapatos do Sr. Manuel.

Ah, então foi por isso que o Henrique era tão simpático e cuidadoso quando estava a pedir qualquer coisa, mas uma vez que se deixou levar pelo fulgor da corrida e ficado muito contente e vaidoso por ter ganho aposta já foi bem menos ajuizado quando o Sr. Manuel disse que havia outras formas de ganhar.

Já quanto à Henriqueta, nada melhor do que contar o que se passou no dia seguinte.

Estava o Sr. Manuel de manhã, que ele levanta-se bem cedo, a sair do quarto para a sala, quando dá como a Henriqueta em cima da mesa que lhe pergunta – Não percebo muito bem o que foi aquilo ontem?

O Sr. Manuel não quer acreditar no que ouvia. Não se pode dar confiança às formigas, pensou. Ainda ontem nos conhecemos. Trocámos meia dúzia de palavras. Mais conversa como consequência de um encontro ocasional do que qualquer outra coisa. Está bem que as levou a dar uma volta ao canteiro, mas ainda assim foi um quase nada. E agora entram-lhe pela casa adentro sem pedir autorização, logo a estas horas da manhã, estando ele ainda de pijama, e fazem-lhe uma pergunta destas, como se tivessem privado durante imenso tempo.

Teve o Sr. Manuel estes pensamentos todos. O que levou o seu tempo, que até foi bastante, mas a Henriqueta não se deu por ignorada, e ainda muito menos preocupada. Deixou-se ficar, em cima da mesa da sala, expectante, tão diferente da primeira Henriqueta, a do afogamento das formigas nas rosas, que não se calava. E esperou tanto tempo, deixando a sua pergunta no ar, que o Sr. Manuel não teve outro remédio senão procurar responder à pergunta com uma outra pergunta.

– Aquilo, o quê?

– Aquela implicação com o Henrique.

– Mas não houve nenhuma implicação com o Henrique.

– Houve sim. Não podias ter deixado que ele ganhasse a aposta em paz. Tiveste logo de dizer que havia outras formas de resolver o problema, sem ser necessário correr em cima dos teus sapatos. Olha, digo-te eu que conheço bem o Henrique, da boca dele só tinha ouvido tecer-te elogios. Ah, o Manuel isto, o Manuel aquilo, o amor às rosas, tão cuidadoso, tem sempre a casa limpa. Às vezes até já era demais, já me chateava um pouco, em particular aquilo da casa limpa, confesso. Por isso lá concordei em falarmos contigo, que eu no início estava um pouco reticente. Antes de te termos pregado a partida de desaparecermos, eu senti que ele estava a ficar muito contente por falar contigo, mas depois do que lhe disseste, depois da corrida, já não era o mesmo, pouca conversa, deitou-se mais cedo do que o costume, ele que até gosta de ficar um pouco até mais tarde, comigo a puxá-lo para a cama, agora quis logo ir deitar-se, acho que só pode ter sido tristeza, e dormiu muito agitado. Durante a noite ouvi-o falar alto várias vezes enquanto dormia: Mas Manuel, mas Manuel… e não ia para além disto, ao fim de um bocado lá tornava, mas Manuel, mas Manuel… e foi assim a noite toda.

O Sr. Manuel, o homem que gostava de rosas, que vivia naquela casa onde, tanto quanto se sabe, não recebe visitas, tem agora em cima da mesa uma formiga que lhe diz estas coisas todas seguidas, todas a seguir umas às outras. E palavras que o deixam melindrado. Então, parece que esta formiga o acusa de destruir uma amizade que ele nem sequer sabia que existia.

– Peço desculpa – retorquiu o Sr. Manuel, até para dizer qualquer coisa – não era a minha intenção, não é muito comum falar com formigas, também para mim isto é tudo muito estranho. Ademais, não foi por mal que falei da outra possibilidade de passar para a frente a correr para trás, até foi para a Henriqueta não ficar muito triste por ter perdido a aposta.

– Ora essa, pela minha parte agradeço, – respondeu, pousando a parte traseira na mesa e erguendo-se nas patinhas da frente – contudo, é uma brincadeira que eu faço com o Henrique, eu deixo-o ganhar algumas apostas e ele deixa-me a mim ganhar outras coisas.

– Assim sendo, qual é interesse de fazerem apostas?

– Pois aí está, eu até tenho dito ao Henrique, o Sr. Manuel pode ser tudo isso, mas o problema dele é que vive muito sozinho.

– Como assim? – perguntou o Sr. Manuel visivelmente irritado com a desfaçatez da formiga.

– Então, não percebe qual o interesse de fazer apostas pois não tem ninguém com quem apostar. Por isso, essa é uma daquelas perguntas que só consegue entender a resposta quem não precisa de fazer a pergunta.

É a segunda vez que o Sr. Manuel fica sem palavras com o que dizem as formigas. E é bem verdade que é no plural, não é o que diz a formiga Henrique, é o que diz a formiga Henrique e a formiga Henriqueta. E suponho que vocês, que estão a ouvir esta história também estejam a pensar: “mas que formigas tão complicadas”.

Pois é, até eu estou surpreendido. Nem devia. Fui eu que fui à livraria e resolvi comprar o livro com esta história, e se escolhi uma história com este título, O Homem que Vivia com duas Formigas, já devia estar a espera que fosse uma história um pouco estranha. Mas pensei que fosse uma história em que o homem, que é o animal que mais sabe da criação, ensinasse alguma coisa às formigas.

E não é que em vez disso aparecem aqui estas formigas a dizer umas coisas tão complicadas que nos deixam boquiabertos. A todos, ao Sr. Manuel, a mim, e estou em crer que também a vocês. Mas vamos lá tomar atenção, que por vezes complica quem não sabe a resposta, como vocês já devem ter muitas vezes dado por isso na escola.

Por isso, estive eu aqui a pensar um bom bocado na resposta da Henriqueta, para perceber se fazia sentido, ou se não estaria esta formiga a atirar-nos areia para os olhos com as suas complicadas palavras.

Após muito pensar, e olhem que pensei mesmo bastante, cheguei à seguinte conclusão: sim o que a Henriqueta disse até faz algum sentido, não foram palavras ditas apenas da boca para fora, como aquelas pessoas que falam por falar, porque ficam muito nervosas com algum silêncio e assim resolvem dizer a primeira coisa que lhes vem à cabeça, como quando somos apanhados com o doce na boca que nos disseram para não comer já.

O que a Henriqueta conclui vem mesmo da cabeça dela, que ainda que pequena parece ter alguma coisa lá dentro. Deixem-me explicar-vos como é que eu entendi o que ela disse, e depois verão se bate certo com o que vocês também pensaram ou não. Vamos lá por partes.

As apostas são feitas por duas ou mais pessoas. Ninguém faz uma aposta consigo mesmo. Até pode fazer, mas não tem graça pois quem ganha e quem perde é a mesma pessoa, e para isso mais vale não fazer aposta nenhuma.

Da primeira parte concluímos que quem está sozinho não faz apostas. E, se pensarem um pouco mais, também concluímos que não fica contente nem triste, pelo menos devido a fazer apostas. Vamos então à segunda parte.

É muito bom ficar contente.

O que concluímos desta segunda parte que fazer apostas é uma forma de ficarmos contentes, ainda que tenhamos de nos arriscar a ficar tristes. Já quanto a terceira parte.

Quem muito aposta pode também perder sempre e nesse caso nunca vai ficar contente.

Isto quer dizer que temos de ter cuidado com as apostas, até porque nos arriscamos a ficar sempre tristes. E isto levou-me à quarta parte.

Uma forma de evitar perdermos todas as apostas e ficarmos sempre tristes é fazer apostas com quem é nosso amigo e umas vezes nos deixa ganhar e outras vezes deixamo-lo nós ganhar a ele.

Quer então dizer que o Henrique e a Henriqueta são muito amigos um do outro e fazem apostas não para ganharem ou perderem, mas para deixarem o outro contente. E aqui estamos já muito próximos da conclusão final, chegando lá com a quinta parte.

As formigas fazem apostas para estarem contentes, porém, não podem fazer isso como quem faz batota. Não podem fazer uma aposta e combinar logo quem ganha, senão não teria graça. Tem de ser uma das formigas a deixar ganhar a outra porque gosta dela, não porque está combinado.

E é isso que, na opinião da Henriqueta, o Sr. Manuel não pode entender, pois vive sozinho, e vive sozinho pois não sabe a vantagem de viver acompanhado, que é, com o expliquei atrás, fazer apostas para ficar contente. A razão pela qual faz a pergunta é a mesma por que não entende a resposta, senão não viveria sozinho. E assim explicado está.

Enquanto estivemos aqui a conversar esteve o Sr. Manuel calado a olhar para a Henriqueta, com os olhos bem abertos, mas sem ver bem o que se passava. Já a Henriqueta, permanece sentada a observar o Sr. Manuel, e como este continua absorto, resolve desanuviar a situação.

– Não quis dizer que há algum mal em viver sozinho. É apenas uma consequência, não se pode brincar a fazer apostas, especialmente destas em que se desconfia de qual será o resultado assim que se faz a aposta.

– Sim, tinha eu pensado que quando se faz uma aposta o fruto da aposta era a própria aposta, não sei se é isso que queres dizer.

– Sim, é exatamente isso. – Apressou-se a responder a Henriqueta, sem perceber muito bem, mas vendo uma boa oportunidade para resolver a questão que já se tinha arrependido de levantar.

– Pois deve ser – concordou o Sr. Manuel exatamente pela mesma razão.

– Já agora que só estamos aqui apenas os dois posso fazer-te uma pergunta?

– Sim, pergunta – responde o Sr. Manuel um pouco reticente, pois desde que tinha começado a conversar com perguntas que se sentia incomodado, como já há muito tempo não lhe acontecia.

– Bom, esta é uma discussão que tenho tido com o Henrique. Por vezes comentamos isso. Tu gostas de estar sozinho?

– E o que falam vocês sobre isto?

– O Henrique diz que se vive sozinho é porque gosta, já eu não tenho tanto a certeza. Até costumo dizer ao Henrique, se calhar acha que gosta, todavia se não vivesse sozinho se calhar até gostaria de estar acompanhado. Ao que o Henrique costuma replicar, que o Manuel é todo as suas rosas, nada mais do que as suas rosas, para ele o passar do tempo mede-se pelo florir da roseira, e por isso não se importa nada, pois não está sozinho, ou está com as rosas ou está à espera das rosas. Ao que eu contraponho que não faz sentido assim uma paixão tão grande pelas rosas. E o Henrique diz que quem somos nós para julgarmos a paixão dele pelas rosas, se não damos muita importância ou seu cheiro. E eu insisto como ele, que não faz sentido ter por companhia as rosas, com as rosas não se pode jogar a fazer apostas.

– Ah, sim. E que responde o Henrique a isso.

– Olha, não responde nada, diz apenas, pois é. Mas não tenho a certeza que esteja mesmo a concordar. Diz aquilo mais com uma impossibilidade, um beco sem saída no raciocínio. Sabes ele gosta muito de fazer apostas. Lá isso gosta. – confirma a Henriqueta com um acenar de cabeça e um sorriso para dentro. – Por outro lado está totalmente convencido que o Manuel gosta de estar sozinho, por isso fica sem resposta.

– E tu estás convencida da resposta?

– De qual resposta?

– De que eu gosto de viver sozinho.

– Pois, até quero acreditar, mas não consigo imaginar que não gostes de apostas – respondeu franzindo os pequeninos olhos de formigas, projetando-os no Sr. Manuel, como que dizendo, “vá diz lá a verdade, tu gostas de apostas”, como os pais fazem aos meninos quando acham que podem não estar a dizer a verdade.

– Bom, não estou sozinho, agora tenho duas formigas – surpreende-se o Sr. Manuel a dizer, como se o que disse tivesse saído de uma parte da cabeça dele que se tinha revoltado.

E não é que ao ouvir isto a Henriqueta deu um mortal à retaguarda empranchado com 720º de pirueta seguido de três flic-flacs, também à retaguarda.

E foi uma maravilha de se ver, aquelas patinhas todas no ar, as bolinhas de que é feito o corpo da Henriqueta primeiro completamente alinhadas no mortal a rodopiar sobre si própria e depois dobrando-se graciosamente nos flic-flacs, que o Sr. Manuel estava boquiaberto de felicidade.

– Não pedes uma oportunidade para fazeres as tuas acrobacias – ouviu-se de uma das pernas da mesa, onde o Henrique vinha subindo à velocidade de uma formiga.

– Ouviste, ouviste, – exclama a ofegante Henriqueta – o Manuel disse que nos tinha a nós.

– Pois, querida, desculpa dizer-te, e desculpa-me o Manuel também, mas já não tenho a certeza se isso vale a pena, pois percebi ontem que ele não sabe brincar.

– Não sei brincar, como assim?

– Ontem estragaste a brincadeira com aquela conversa da corrida para trás como se fosse para a frente – respondeu o Henrique, acabado de chegar ao tampo da mesa e não avançando mais para mostrar que não era dado a amizades fáceis.

– Oh, Henrique, não digas isso – apaziguou a Henriqueta – o que lá vai lá vai, e aposto que ele até vai querer brincar às apostas connosco.

– Aposto que não – disse de imediato o Henrique, que não resistia a uma aposta.

– Aposto que sim – selou a Henriqueta.

– Então está apostado – fechou o Henrique.

– Apostado está – confirmou a Henriqueta.

– Apostado, apostadinho com um bom casaco de linho – ajuntou o Henrique.

– De linho só se for um vestido, que agora é que mais me falta faz – pediu a Henriqueta.

– Vestido será – arrematou o Henrique.

– Como é que vais arranjar um vestido de linho – entrecortou o Sr. Manuel, dirigindo-se ao Henrique.

– Estás a ver que ele não sabe brincar – diz o Henrique à Henriqueta – acho que vais perder a aposta, se fosse a ti dava-me já por vencida.

– Vencida não serei, pois tenho cá uma fezada no Manuel – atira-lhe com confiança.

– Eh, eh, eh, acho que essa fezada vai dar em nada – ri o Henrique a bandeiras despregadas enquanto vai avançando na mesa para se juntar à Henriqueta.

– Ah, ah, ah, – gargalha a Henriqueta com a sua voz de soprano e um tom de falsete.

– Não brinques não não não, brinques não– soa o Henrique, repetindo os nãos para tirar partido de ser baixo.

– Julgas que tens queda para a tragédia, mas para quem te ouve és uma comédia – esganiça-se mais a Henriqueta, revelando no soprano o rir de quem ri por último ri melhor.

– Não, não – insiste o Henrique deixando os cantos dos lábios mostrar o início de um sorriso.

– Sim, sim – entoa a Henriqueta a peito cheio, procurando, agora que estão lado a lado, suplantar Henrique em postura e parecer muito maior do que ele.

– Não, não – faz-se o Henrique pequeno para ir buscar lá dentro uma ainda maior pujança de voz.

– Sim, sim.

– Não, não.

– Sim, sim, sim.

– Não, não, não.

– Sim, sim, sim, sim.

– Não, não, não, não.

– Talvez – intervém o Sr, Manuel, temendo estar perante um desentendimento sem solução.

As duas formigas perdem as suas posturas operáticas e desatam a rir até mais não.

– Talvez, quero dizer, pode ser que sim e pode ser que não – corrige-se o Sr. Manuel, espantado com a reação e achando que poderia ter metido o pé na poça.

E se antes as duas formigas riam, agora desatam numa enorme gargalhada, que é um riso sem intervalos, curvando-se e batendo com as quatro patinhas de cima nas patinhas de baixo. O Sr. Manuel, olha incrédulo para o que se está a passar.

– Já ganhei, já ganhei – retoma o Henrique, fazendo um esforço para se colocar de pé e recuperar a postura de peito para fora.

– Ganhaste nada, nada – recompõe-se a Henriqueta, seguindo-o com um olhar cúmplice.

– Ganhei, ganhei, ganhei, ganhei, ganhei.

E fez-se um silêncio que permitiu ouvir os últimos sons abandonarem a sala e dissiparem-se por alturas da roseira. Sobre a mesa estão as duas formigas arfantes, mas satisfeitas, olhando expectantes para o Sr. Manuel que fica estático sem saber bem o que fazer.

– Estás a ver, – quebra o Henrique o silêncio – para além de não saber brincar também não sabe agradecer.

– Agradecer o quê? – pergunta o Sr. Manuel – Estava aqui a pensar como é que o Henrique arranjaria um vestido de linho para Henriqueta. – e hesitando um pouco, acrescenta – Eu talvez possa ajudar.

– Ai, que simpático, muito obrigada, mas não tem necessidade… – responde rapidamente a Henriqueta, dando uns passinhos à frente e aproximando-se da ponta da mesa.

– Ora, ora, o Manuel, afinal parece ser um amigo, aqui destas duas formigas, preocupa-se com elas, mas não sabe aplaudir – interrompe o Henrique.

– Aplaudir?

– Sim, não gostaste do espetáculo? – pergunta o Henrique coçando a cabecinha com a patinha.

– Espetáculo? Isto afinal era um espetáculo? Não era uma aposta sobre o vestido de linho?

– Lá voltamos ao mesmo, era e não era, – mostra-se aborrecido o Henrique, já com manifesta falta de paciência – a Henriqueta não te esteve a explicar tintim por tintim como funcionam as apostas?

– Estiveste a ouvir-nos? – exclama a Henriqueta, olhando surpresa para o Henrique.

– Então, Quiqueta, acordei, não dei por ti e vim à tua procura.

– E não disseste nada quando chegaste? – pergunta abrindo os lábios num sorriso fininho.

– Disse bom dia, mas vocês estavam não embrenhados na vossa conversa que não ouviram.

– Disseste, disseste!? – duvida a Henriqueta.

– Queres apostar… – desafia ao Henrique

– Vocês apostam acerca de qualquer coisa – interrompe o Sr. Manuel, receando que a conversa voltasse a ir para um diálogo entre estas duas formigas que o deixaria mais uma vez sem saber o que fazer.

As formigas olham uma para a outra, incrédulas.

– Ai, Manuel, Manuel, – diz o Henrique – já não sei o que te diga. Dirige-se para uma cartela de comprimidos que está em cima da mesa, coloca-se em cima de um deles com as perninhas uma para cada lado, como se o estivesse a cavalgar, e acrescenta – tens de ter cuidado com os cavalos, olha que estes comprimidos matam.

Começa então a balançar-se sobre o comprimido, as patinhas do meio segurando-o e as de cima agitando-as no ar.

– Eh, bicho, eh, bicho – vai repetindo enquanto aumenta a amplitude até que acaba tombado no chão.

Levanta-se, bate no corpo como se estivesse a sacudir o pó e pergunta.

– Ó Manel, tu tomas isto todos os dias?

– Sim, são para o coração, o médico disse que devo tomar um por dia.

– Ai, ai, ai, eu não sei muito disto, mas desconfio muito destes comprimidos, na última casa onde morávamos a Mafalda tomava destes comprimidos e ao fim de algum tempo catrapum.

– Catrapum? – pergunta o Sr. Manuel.

– Sim, catrapum ou catrapus, tanto faz – responde o Henrique, encolhendo os ombros com uma expressão triste no rosto.

– Ah, catrapus, caiu – esclarece-se o Sr. Manuel.

– Pois foi, mas o chato é que não se conseguiu levantar. Eu e a Henriqueta ainda subimos para cima dela para lhe fazer cócegas no nariz, a ver se espevitava, mas nada, catrapus, finito.

– Finito?

– Sim, finito, 112, venderam a casa e depois foi viver para lá um casal jovem que estava sempre ocupado um com o outro e não tinham tempo para formigas, nem sequer tentámos falar com eles, eu disse logo à Henriqueta, finito, é melhor mudar de casa. E foi quando viemos para aqui.

– Mas o que aconteceu à Senhora?

– Nada, era bem simpática, a Senhora, como tu dizes, a Mafalda. Caiu e depois não lhe aconteceu mais nada, foi isso. – o Henrique continua com uma expressão hesitante no rosto – Tínhamos longas conversas. Como nós estamos a começar a ter. Por isso deixa de tomar esses comprimidos, cá para mim só fazem mal.

– Bem é que não fazem de certeza – intervém a Henriqueta que se manteve este tempo todo em silêncio a observar o Sr. Manuel – falámos com outras formigas amigas e parece que não acontece apenas uma ou duas vezes, várias nos disseram que sim, é bastante frequente, começam a tomar os comprimidos e algum tempo depois catrapum.

O Sr. Manuel olha para os comprimidos alinhados, selados no plástico, e imagina um regimento de cavalaria a desfilar em parada perante uma tribuna onde se encontra a ele próprio, Manuel Osório, com o peito todo medalhado, fazendo a continência com a palma da mão bem visível para fora onde estão os dois comprimidos da manhã, um verde e o outro laranja, dois puro sangue de linhagem lusitana, que docilmente rodopiam sobre si, assentando com a cabeça, agitando a crina, toma-me, toma-me, parecem dizer, e, obediente, o Manuel Osório aproxima a mão da boca ligeiramente aberta, os ágeis corcéis dão os dois curtos passos de preparação antes de se fazerem à barreira, avançando de seguida a trote, saltando um atrás do outro para dentro da boca, pisoteando a toda a brida a língua e cavalgando pela goela abaixo.

– Mas não fiques a pensar nisso – acrescenta a Henriqueta preocupada com o ar ausente do Sr. Manuel.

– Pensa nas rosas, pensa nas rosas – vem em amparo, assustado, o Henrique.

– Tu és sempre assim, porque te puseste com aquela brincadeira do rodeo em cima do comprimido? – diz Henriqueta ao Henrique, na ausência de resposta do Sr. Manuel.

– Penso nas rosas? – regressa o Sr. Manuel como ser tivesse saído de um sonho.

À sua frente estão Henrique e Henriqueta, as duas formigas, de olhos muito esbugalhados.

– Está tudo bem? – apressa-se o Henrique a perguntar, agora que o Sr. Manuel parece ter voltado do seu súbito devaneio.

– Sim, sim, está tudo, – responde – o que é que vocês estão aqui a fazer?

– Então, Manuel, não sabes quem somos? Somos o Henrique e a Henriqueta, os teus amigos – diz o Henrique, puxando a Henriqueta para ao pé de si, abraçando-a e colocando um sorriso simpático no rosto.

– E desde já te avisamos que somos umas formigas um pouco tontas, – sorri também a Henriqueta – somos divertidas, mas às vezes não é para sermos levadas muito a sério.

– Sim, claro, o Henrique e a Henriqueta, onde anda esta minha cabeça – o Sr. Manuel leva os dedos da mão à testa.