O Burro Castanho

Esta é a história do burro Castanho que tinha o nome mais óbvio que se pode ter, pois ele era de cor castanha. De uma cor castanha que não deixava dúvidas. Há burros de um castanho mais para o claro, sobre os quais se pode questionar se não serão antes cinzentos esbranquiçados, e aos quais se dá o nome de castanho para fincar uma certeza e não darem motivo a conversas que não levam a lado nenhum.

Assim, se ao passar pelas ruas da aldeia aqueles que estão à porta da taberna, e nada mais fazem do que zombar com quem passa, perguntarem:

– Ó Ti Maria, de que cor é o burro?

Já a Ti Maria pode responder:

– Quem, o Castanho? Então não se está mesmo a ver.

E pode assim a Ti Maria ir, sem mais demoras, migar as couves que traz da horta para dar às galinhas. Porque também nas aldeias há quem prefira passar o dia a conversar em vez de fazer coisa alguma.

Desta forma, o nome do Castanho não é uma afirmação, é uma realidade. Bom, ele não é todo castanho. O focinho até é bem branco, assim como as auréolas em volta dos olhos espertalhões e a barriga que é de neve, mas de resto é de um castanho carregado de burro jovem e saudável, mantendo ainda alguma daquela curiosidade estonteada que, não se sabe ainda por que razão, ataca os burrecos nos primeiros meses das suas vidas.

Não vos vou falar da vida do Castanho enquanto jovem, pois só isso daria uma história completa, ainda que fosse como aquelas histórias onde não há fio nem meada. Não sei se percebem. É aquele tipo de histórias em que estão sempre a acontecer situações muito agitadas e emocionantes, e, contudo, não se percebe a razão de cada uma delas.

Uma história tem tanto mais graça se o que está a acontecer em cada momento na história tem alguma relação com o que aconteceu antes. São histórias onde há um sentido, que, se for mesmo uma boa história, costuma ser do princípio para o fim.

Mas a história do Castanho enquanto burreco é uma sucessão de correrias sem sentido, de um lado para o outro, sempre aos saltos, sem razão alguma. De tal forma que se nós não soubéssemos do que são feitos os burrecos diríamos:

– Este Castanho não nasceu bom da cabeça.

A verdade é que é tão assim, os humanos e os burrecos vivem há tanto tempo juntos, que já ninguém se questiona, e burro, ou humano, quando veem um burreco aos saltos pelos campos sem ser por mosca ou outra aflição qualquer, sorriem apenas e dizem:

– Olha, lá está o burreco aos saltos.

E o que torna os burrecos ainda mais engraçados é que têm tendência a serem de um guedelhudo despenteado. Não daqueles guedelhudos que lavam o cabelo todos os dias e o trazem bem penteado, às vezes até preso por um laço. Esses talvez gostem de pensar que são guedelhudos, mas se vissem o Castanho enquanto burreco de certeza que até ficariam acanhados.

O burreco Castanho, esse sim, era um verdadeiro guedelhudo. Tinha o cabelo tão revolto como os pinotes que dava com as patas de trás e os saltos a pés juntos com as da frente. Aquilo era uma descoordenação de pura alegria.

Mas, como disse, contar a história do Castanho enquanto burreco seria como os episódios de desenhos animados, cheios de correrias e travessuras. Tanto se poderia ver os episódios do princípio para o fim, como do fim para o princípio, ou vê-los mesmo salteados. E eu quero que esta história tenha princípio meio e fim.

Por isso a história começa quando o burro Castanho deixa de ser burreco e começa a pensar na sua vida. Porque todos nós temos um momento em que deixamos de ser burrecos e pensamos sobre o que somos e o que estamos a fazer aqui. E não se encontrará ninguém melhor do que o burro Castanho para nos contar o que lhe vai pela cabeça. Passemos-lhe então a palavra.

Eu sou o burro Castanho. Ainda até não há muito tempo não passava de um burreco e nem sequer pensava nisso. Queria era brincar e correr à destravada. Quando não estava a brincar ou a correr ia preso atrás do carro de bois. Eu perguntava porquê e a resposta que recebia era que seria para me habituar.

Eu sou o burro Castanho e o meu pai e a minha mãe formam a junta de vacas que puxa o carro de bois. A Laranja é a minha mãe e a Borisca é o meu pai. Distingo o meu pai da minha mãe pois todo o leite que bebi em pequeno era da Laranja que a Borisca não é de muito de dar leite. E é mesmo verdade que até o Ti António o pode confirmar, quando logo pela manhã vem à ordenha, volta não volta, lá diz ele:

– Mas que raio de vaca tu me saíste, que quanto a leite mais pareces uma bica no pico do verão.

Quer ele com isto dizer que quando ela a munge pouco leite lá lhe sai das tetas. Já ver ordenhar a mãe Laranja é um regalo, de cada vez são pelo menos dois baldes cheios. Daquele bem cheiroso, cheio de espuma e que assim que esta desaparece já dá pela saborosa nata a aglutinar-se à superfície.

Quantas vezes, já depois de o Ti António me deixar meter o focinho para arrebanhar o fundo do balde, ficava-se eu sentado um bom bocado a lamber a nata que me tinha agarrada aos beiços. Bons tempos aqueles, que assim que deixei de ser burreco nunca mais o Ti António me deixou meter no nariz no balde. Que saudades, doce mãe, doce vaca Laranja.

Mas lá por a Borisca dar pouco leite não quer dizer que seja menos vaca do que a Laranja. Quando estão a puxar o carro de bois, especialmente quando está muito pesado, é a Borisca que é capaz de dar aquele puxão que faz despegar as rodas do chão e pô-lo a andar. Nesse momento a Laranja, que ficou com a cabeça para trás na canga, devido ao solavanco da Borisca, encaixa-se de novo e ajuda o marido para aproveitarem o momento e não pararem mais.

É por isso que o Ti António, quando está mais bem disposto, já se queixa de outra forma da falta de leite da Borisca, diz ele:

– Ah, Borisca, se fosses para dar leite como és para trabalhar…

Ainda não vos falei do Ti António e não consigo falar dele se não falar da Ti Maria. O Ti António e a Ti Maria são assim como a Borisca e a Laranja. Sempre juntos, ainda que por vezes cada um para seu lado cada um a fazer as suas coisas.

Recordo uma vez, e dessa vez ainda nem sequer estava preso atrás do carro de bois, como costuma acontecer, mas sim a comer de umas folhas de videira, apesar disso de olho no carro, que parecia querer ir embora sem mim. Estava então o carro de bois com as rodas bem enterradas na terra seca de setembro, carregadinho com uma dorna cheia de uvas. E que bem cheia que ela ia, que até tiveram de ser prensadas com uma enxada para poderem caber todas.

E não foi era só por isso que iam esmigalhadas. Dizia a Ti Maria que seria melhor irem menos bonitas por causa da inveja. Quando o carro passa pela aldeia há sempre aqueles que gostam de deitar os olhos:

– Ó Maria, deixa lá ver como vai a tua dorna?

Pedem eles subindo ao carro em andamento, metendo a cabeça entre o odor das uvas e o zumbido das vespas, e se deitam os olhos logo ficam a remoer no que viram. É acerca disto que diz a Ti Maria:

– A inveja dos amigos não faz bons companheiros.

Não sei bem o que ela quer dizer, pois eu não tenho amigos. Toda a vida de burreco que me lembro foi no chão ao pé do palheiro, e a ver alguém, para além do meu pai e da minha mãe, era o Ti António e a Ti Maria, que ainda que não me tratem mal, não se pode dizer que sejam meus amigos.

Estava então o carro com as rodas bem enterradas na terra e carregado da dorna quando o Ti António foi logo buscar a vara, aquela que tem um pico de ponta de prego, pois por experiência já sabia que não iria ser fácil.

A mãe Laranja entrou num daqueles pânicos, que por vezes a tomavam, não que começasse a correr pois já estava presa à canga. Assim, e como era hábito nessas situações, fugia com o traseiro à lança, não ficando alinhada.

Para vocês que estão a ouvir e não sabem bem como é um carro de bois aqui vai uma explicação. A lança é um pau muito comprido em cuja ponta assenta a canga e que é a continuação da tábua principal do carro de bois. Já agora, se calhar também não sabem o que é a canga. Mas este burro vai explicar-vos. A canga é a trave onde as duas vacas colocam a cabeça. E vou-vos dizer que a canga pode ficar muito pesada ou muito leve, se o carro não tiver o peso posto sobre as rodas. Com o peso na parte de trás do carro de bois a canga puxa a cabeça das vacas para cima, e com o peso na parte da frente empurra-as para baixo.

Sei isto, não porque fui à escola, mas pelo que vi, e do que me conta o meu pai e a minha mãe que até costumam comentar que preferem mil vezes a canga a empurrá-los para baixo do que a puxá-los para cima quase lhes tirando os pés do chão. O meu pai costuma dizer com o ar pensativo, que por vezes põe, de quem já pensou bastante num assunto:

– Nós as vacas não somos como os pássaros, gostamos é de ter os pezinhos bem assentes no chão.

Podeis ter a certeza de que o mesmo se passa com os burros. Também eu, mesmo na juventude, quando dava aqueles saltos estrambólicos, não era para sair do chão, mas sim para nele bater a quatro patas com força e levantar muita poeira. Nós os burros adoramos poeira, por causa das moscas.

Mas estava a dizer que desta vez a dorna estava bem colocada, mesmo sobre o eixo das rodas, pelo que não era difícil segurar a canga na cabeça, o problema era puxar o carro, isso sim, tirar as rodas do buraco em que se tinham afundado no chão.

Então o tio António começou a picar as costas da mãe Laranja com a vara enquanto repetida:

– Põe-te Laranja, põe-te.

E a cada põe-te dava-lhe uma picada no lombo que lhe furava a pele grossa.

Provavelmente também não sabeis o que o Ti António quer dizer com põe-te. Como a mãe Laranja estava de lado, não alinhada com a lança do carro de bois, a força dela não iria empurrar o carro para a frente, mas sim um pouco para o lado, onde estava o pai Borisca. Isso fazia com que a soma das forças não fosse igual às forças somadas. Como vos disse nunca andei na escola, mas seria preciso ser muito burro, com estes meses preso atrás do carro a ver os meus pais a puxá-lo, para não perceber isso.

Então, com põe-te, estava o Ti António a dizer à minha mãe para se colocar de forma a fazer força junto com o meu pai na mesma direção.

Foi então que o pai Borisca, que não gostava que dessem ordens à sua esposa, não se conteve e disse ao Ti António, olhando-o nos olhos:

– Não gosto que digas põe-te à minha mulher.

Não sei se o Ti António percebeu ou não, mas a verdade é que se virou para o meu pai e lhe disse:

– Borisca, és tu que nos vais tirar daqui.

O meu pai disse à minha mãe:

– Deixa comigo querida, não te preocupes, quando o carro começar a andar alinhas-te.

O meu pai tem esta facilidade de deixar a minha mãe tranquila. Então foi um gosto de ver, O Ti António a gritar vermelho, com a vara ao alto confiando apenas na força do meu pai:

– Vá Borisca, vá Borisca, força, força.

E parecia que era ele que estava a fazer a força, mas nada disso. Estava apenas a contrair os músculos e a ficar vermelho. Foi sim o meu que pai torceu os olhos de uma maneira que nunca mais de esqueci. Puxou a cabeça para a frente e de um golpe arrancou as rodas da terra, colocando o carro em movimento. Ao que logo se lhe juntou a mãe Laranja olhando para o meu pai orgulhosa daquele marido dela. Também nunca mais esqueci os grandes olhos meigos que lhe deitou.

Nessa noite, muito a mãe lambeu o pescoço forte do meu pai com a sua língua áspera enquanto ele repousava a cabeça feliz na cama de palha.

Eu ainda não sei o que é o amor, mas se o amor for o que eu imagino, então é o que o meu pai e a minha mãe sentem um pelo outro. Não é que não tenham os seus feitios. Ui, e que feitios. Para já, por vezes a minha mãe mostrava alguma vergonha em ter outra vaca por marido. E por isso ficava irritadiça e implicativa com o meu pai. Ainda que a culpa não seja completamente dela. A mãe Laranja tem um defeito, dá ouvidos ao que os outros dizem. O pai Borisca até lhe costumava dizer:

– Devias pensar mais pela tua própria cabeça.

– O que queres, até as cabras se riem de nós – respondia-lhe a minha mãe.

E é verdade, posso confirmar, não gosto nada das cabras, sempre a badalar a badalar, quando passavam por nós lá começavam na galhofa, com risinhos miudinhos umas para as outras. E faziam de propósito para se perceber o que diziam baixinho por entre a chocalheira dos badalos:

– Olha, um casal de vacas que tem um filho que é burro.

Ninguém gosta de ouvir uma coisa destas. Compreendo a minha mãe, o meu pai é que tem nervos de aço, mas não é fácil ignorar o que estão sempre a dizer baixinho junto aos nossos ouvidos. É muita maldade.

E também não tenho a certeza de que as cabras sejam todas assim, pois das do Ti António, que costumam andar sempre connosco, umas vezes à frente do carro outras atrás, nunca dei por tais impropérios. Ainda que quando a mãe Laranja dizia:

– As nossas cabras não são como as outras.

O meu pai logo lhe respondia com a sua habitual calma:

– Laranja, não te enganes, são todas umas cabras. Estas estão aqui caladinhas, mas quem é que achas que vai badalar essas histórias às outras?

E o pai Borisca deve ter razão, pois quando as nossas cabras se cruzam com as outras ficam ali algum bocado misturadas à conversa, até que o Ti António bata com a vara no chão e diga:

– Ahhh, cabrada…

E elas lá se separem indo cada uma com o seu cabreiro. Que a língua fácil das cabras tem sempre o seu dono.

Uma coisa que eu aprendi com o meu pai, e que não tenho a certeza que a minha mãe alguma vez tenha verdadeiramente aprendido, é que as cabras são umas hipócritas. E as nossas cabras já perceberam que eu sei. Por isso evitam aproximar-se de mim. Bem podem vir com a aquele badalo miudinho e um sorrisinho falso que se eu as deixo vir é para se chegarem mais ao jeito do meu coice.

O Ti António já deu por isso e até comentou com a Ti Maria, pelo que a Ti Maria o aconselhou:

– Ó António, então não as deixes chegar ao burro.

E não fiquem com isto e pensar que a Ti Maria e o Ti António gostam das cabras. Bom, gostam, mas é para as comer. E gostam de decidir quando é que as comem. Por isso é que se preocupam que com um coice meu alguma parta desta vida fora de horas.

E deixai-me dizer-vos num aparte:

– O bom desta vida de burro é esta certeza que quando olham para nós não estão a pensar no que dia que nos vão comer.

Nisso até tenho alguma pena das cabras. Não servem para outra coisa a não ser para comer ou para dar leite. E o Ti António está sempre de olhos nos cabritos, que eu sei bem que ele gosta deles no forno, como se cozinha aqui na zona, ou então assim que uma cabra deixa de dar leite também acaba mal, mas é em guisado, pois de velha é menos tenra.

Se calhar é por isto que as cabras são como são. Não deve ser fácil andar sempre desconfiadas dos olhos que lhes colocam em cima e isso faça delas bichos maus pois não têm ilusões. Por exemplo, eu, que sou burro, tenho todas as ilusões do mundo, tudo me espanta, ainda que, como vos disse, sempre com as patas no chão. Mas sobre isso mais vos contarei, deixem-me agora terminar a conversa das cabras, e depois do feitio da minha mãe e finalmente do feitio do meu pai.

O que tenho a dizer é que as cabras são mesmo umas cabras. Bem podemos arranjar justificações, mas se falam assim da minha família então não há desculpa. Não sei se voltarei a este assunto, porém se nada mais disser aqui fica a minha certeza:

– Não gosto de cabras.

Lá no fundo, a minha mãe também não gosta de cabras, o problema é que lhes dá ouvidos. E, como diz o meu pai, quem deixa entrar o que não interessa pelos ouvidos fica depois a encucar.

Como é que eu sei que está a encucar, devem vocês perguntar. Não, eu não consigo ouvir o que vai dentro da cabeça da minha mãe. Agora o que todos nós percebemos, eu e o meu pai, é que fica indisposta, até um pouco embirrenta. Principalmente com o meu pai, que ela é quase sempre um amor ternurento para mim. Bom, às vezes quando encuca mesmo muito, e está particularmente inquieta, implicando com tudo, como se nada estivesse bem e nada a deixasse satisfeita, olha para mim com uma tristeza desamparada, onde ainda assim eu vejo amor nos olhos dela, mas sem alegria.

E até sei o que anda a encucar. Sei, pois ouvi-a falar com o meu pai. E vou-vos dizer na condição de não irem contarem às cabras. E mesmo que contem, que interessa, pois inventam tudo que até poderiam inventar o que vos vou contar, se não é que inventaram já. Como diz o meu pai, o melhor é mesmo não lhes dar ouvidos, nem perder tempo a tentar perceber se é mentira ou verdade.

Numa noite, no palheiro, quando eles pensavam que eu estava a dormir, ouvi o meu pai perguntar à minha mãe:

– O que tens tu, que andaste todo o dia indisposta?

– Não gosto que me trates com se eu fosse a tua mulher – respondeu a minha mãe.

E nada mais disseram.

Eu já ouvi falar que um casal se pode divorciar. Separam-se e pronto. Vai cada um para seu lado. Mas não é muito comum cá na aldeia. Senão o que seria das juntas de vacas. Quem puxaria os carros de bois.

É, por isso, mais uma coisa de ouvir falar. Os divorciados, quando os há, aparecem é no mês de agosto, quando vêm as pessoas todas de Lisboa à festa da aldeia.

Mas isto que eu digo é mesmo só de ouvir falar. E o que ouvi falar foi à Ti Maria, que uma vez, quando estava no palheiro a ordenhar a minha mãe, apareceu a filha da Dona Mercedes a perguntar se tinha queijo para vender.

Depois de sair, disse o Ti António:

– Parece que ela já está divorciada.

Ao que a Ti Maria respondeu:

– Lá em Lisboa põem os corninhos uns aos outros.

Ao que o Ti António abanou a cabeça, como fazemos nós para afugentar as moscas, com um sorriso brincalhão. E fê-lo de forma tão engraçada que até o meu pai e a minha mãe olharam um para o outro com um sorriso contido.

Não sei o que pensar disto, se calhar o meu pai e a minha mãe já estão divorciados, pois já ambos têm corninhos, e a minha mãe estava a dizer-lhe para ele não a incomodar mais. Mas, se fosse assim, todas as vacas estariam divorciadas. Bom, não é bem assim, que agora o Ti Casimiro arranjou umas vacas sem cornos que, assegura ele, até são muito leiteiras. O que me deixa confuso é que foi comprá-las a Lisboa. Fico assim sem saber o que pensar. Se é a Ti Maria não está a falar verdade ou é o Ti Casimiro que disse que elas vieram de Lisboa só para se armar aos cágados. Ele tem fama cá na aldeia de ter a mania de que é mais do que os outros.

Por tudo isto, prefiro não pensar mais no assunto. Sou da aldeia e não vale a pena pensar para além daquilo que conheço e atribuo o que ouvi ao feitio da minha mãe: muito boa e meiga, mas por vezes também tem as suas coisas, e essas coisas são um mistério.

São as coisas da minha mãe um mistério para mim, já não sei se serão também para o meu pai. E não sei por causa do feitio dele. É que o meu pai não é muito expansivo. Embatuca muito, em vez de deitar cá para fora. Como quando a minha mãe lhe disse que não queria que a tratasse mais como mulher é assim que o meu pai reage. Fica calado, não responde nada e depois anda uns dias de mau humor. Bastante mau humor, que até fica bastante bruto. A puxar o carro arranca sem dar sinal à minha mãe, que coitada lá vai arrastada, e até eu sou puxado pelo esticar repentino da corda que me prende ao carro. É o Ti António que o refreia um pouco:

– Então Borisca, hoje parece que estás com as moscas.

Diz-lhe, também surpreendido com o solavanco do carro para cima dele.

Tem bom coração o Ti António. Quando percebe que o meu pai anda com as moscas, como ele diz, dá-lhe alguns mimos. Colhe uma maçaroca e até a descasca antes de lhe a chegar à boca. E o meu pai come-a sem olhar para a minha mãe. É teimoso o meu Pai. Eu, dizem que embora seja burro não saio a ele. Não é que não seja teimoso, mas para mim a teimosia é uma forma de vida, de levar a minha avante, já para o meu pai é a forma que ele encontra de responder a este destino dele de ser vaca e marido e pai, tudo ao mesmo tempo.

Pois é, o feitio do meu pai é teimoso. Ele até tem bom coração, como o Ti António, mas como é vaca se não for teimoso, pensa ele, nunca terá oportunidade de mostrar que o tem, que ele faz o que for preciso pela minha mãe.

Quem o tem fisgado é a Ti Maria, que está convencida que o meu pai só não dá leite porque é teimoso, porque, diz ela:

– A Borisca tem a mania que é diferente das outras vacas.

E até já sugeriu ao Ti António que fosse à feira vendê-la.

– Não impliques com a Borisca – intercede pelo meu pai o Ti António – achas que eu consigo puxar o arado com duas Laranjas.

É mesmo bom homem o Ti António, embora às vezes também tenha as suas coisas, e quem não as tem aqui pelos campos, como daquela fez que condenou o Boby por comer galinhas, ainda que não tenham sido apresentadas provas, só suspeitas. Por aqui as suspeitas são como as sentenças.

Mas isso pouco interessa agora. O que interessa é que o Ti António defendia o meu pai como só um homem consegue entender outro homem. Ainda que a mulher por vezes lhe moesse a cabeça, como ele dizia:

– Lá estás tu a implicar com a Borisca, deixa estar que nunca tive outra vaca assim – acrescentava em boa defesa do meu pai.

O Ti António era um amigo do meu pai. Talvez dos únicos que teve. Que as outras vacas, já para não falar nas cabras, olhavam para ele de lado. E mesmo os poucos bois que havia na aldeia, que tinha uma tradição que os ter apenas para cobrição, não iam muito à bola com o meu pai. Mas a tudo isso respondia ele com a sua teimosia ao lado da minha mãe comigo preso ao fundo do carro.

Agora que já vos contei dos feitios do meu pai e da minha mãe, deveis estar um pouco surpreendidos por ser um pouco rude. Disseram-me que as histórias para crianças costumam ter mais floreados, cheias de coisas bonitas e inspiradoras. Mas olhem que nem todas as crianças são iguais e aqui no campo também eu fui criança e nunca achei que a vida não fosse bonita e inspiradora.

Quando o narrador me disse:

– Então, por que não contas tu a tua história.

Perguntei-lhe eu em jeito de resposta:

– Como é que são as histórias para crianças?

E o narrador falou-me de uma história de que gosta muito. De um elefante com todas as cores do arco-íris, que também tinha alguma dificuldade em ter amigos pois era diferente e andava muito triste com isso, mas que no fim foi compreendido e aceite por todos os outros animais.

Falei desta história ao meu pai, pois nós por vezes falamos os dois dos elefantes. Não que tenhamos visto algum, só de ouvir falar ao Ti António, que os viu na televisão:

– Aquilo é que devem ser uma animais para trabalhar – diz ele – arrastam uma árvore atrás deles – acrescenta com admiração.

O Ti António tem destas coisas, de falar sozinho quando está a ordenhar, ou então quando está a descansar um pouco debaixo de uma oliveira ou de um carvalho. O meu pai, que gosta de saber o que vai pelo mundo, anda sempre por perto e não perde pitada do que ele diz. Vai juntando o que ouve aos pedaços e acha que já tem uma boa ideia do que é um elefante.

Tal paixão criou o meu Pai pelos elefantes que por vezes, quando fala comigo, diz que se tivesse tido oportunidades na vida, se não tivesse confinado àquele palheiro e àquela aldeia, o que mais gostaria de ter feito na vida era ver um elefante.

Por isso, assim que soube do elefante arco-íris para crianças fui logo falar com o meu pai. Que pensou um bom bocado e disse:

– Olha, não sei, que nunca vi nenhum, mas pelo que escutei do Ti António acerca dos elefantes, não me faz sentido um elefante com as cores do arco-íris, e muito menos um elefante triste.

Falei dessa desconfiança do meu pai ao narrador e ele apenas disse:

– Percebo, o teu pai andou a juntar os pontos, mas falta-lhe imaginação.

E depois sorriu como imagino só um narrador pode sorrir. Levemente, abanando a cabeça, com os olhos brilhantes, como que surpreendido consigo próprio.

Quando contei ao meu pai que o narrador disse que ele não tinha imaginação, o meu pai respondeu-me:

– A imaginação não puxa carros de bois e os elefantes, tal como eu os vejo, são capazes de puxar vários carros de bois carregadinhos de dornas muito bem abarrotadas. Ora, de que serve ser das cores do arco-íris para puxar carros de bois. Só iria atrair as moscas, e as moscas só incomodam quando estamos a trabalhar. As picadas delas fazem com que não nos concentremos a fazer força. Por isso, filho, os elefantes que eu imagino até devem ser da cor da poeira, para enganarem as moscas, e devem ter uma pele muito dura que elas não consigam furar para chegar ao sangue.

Estão a ver, é assim que se pensa cá na aldeia. Se existirem elefantes com as cores do arco-íris também só se vierem de Lisboa.

E o meu pai acrescentou uma outra razão que, para mim que sou burro nesta terra, também faz todo o sentido:

– E tristes, como pode haver elefantes tristes. Triste anda a Dona Margarida, a mulher do Sr. Venâncio, que é o maior proprietário por estes lados, e que não precisa de trabalhar. Tem criadas para tudo lá em casa. Nada faz e anda sempre triste, com enxaquecas e deitada no divã.

Também me parece ser muito bem pensado da parte do meu pai. Sou um burro cheio de sorte por ter um pai que não só pensa como é capaz de deixar tudo muito bem pensado.

Vendo o olhar de admiração que tinha colocado nele, o meu pai não resistiu a uma vaidade ternurenta, daquela onde se vê a satisfação de deixar um legado ao filho, algo que eu nunca irei esquecer, acrescentou:

– E que amigos pode ter aquele que nunca trabalha e anda sempre triste. Também não me faz muito sentido que o fim dessa história seja o elefante com as cores do arco-íris ser compreendido. Ele teria era de ser era respeitado, e para isso deve é ser teimoso e não se estar a lamentar por ser diferente.

É assim o meu pai. Usa o seu feitio para compreender as histórias que eu lhe conto.

Então também eu compreendi. Se quero contar uma história para crianças, tem de ser a história para crianças contada pelo burro Castanho. É uma perda de tempo tentar entender a história do elefante com as cores do arco-íris para contar a minha história.

Eu sei que o narrador já me perguntou um pouco incomodado:

– Mas achas mesmo que é assim que queres falar das cabras? E aquela coisa dos corninhos?

Ao que eu lhe respondi, também com uma pergunta:

– Mas que de outra forma posso eu falar delas? Cá na aldeia são assim.

O narrador encolheu os ombros, como quem diz:

– Vamos ver.

Está decidido. Vou ser teimoso como o meu pai. Esta é a história que tenho para contar e não vale a pena tentar inventar outra, que seria inventar o que não sei. Quem quiser lê, quem não quiser não lê. Pelo menos cá na aldeia, até podem não gostar, e dizer que o Ti António e a Ti Maria não eram bem assim, que não faço justiça a pai e a mãe, que este burro anda armado em escritor, ou que as cabras não eram todas mal-intencionadas, mas vão perceber a história. Disso tenho a certeza.

Se estais a ler esta frase será porque decidistes que ireis ler a história até ao fim, mesmo que ela não tenha as cores do arco-íris, nem esteja à procura de compreensão. Por isso fico descansado com o que conto de seguida.

Como já sabeis, esta é a história do burro Castanho, não do burreco. Por isso tenho de vos contar agora o momento em que acho entrei na idade adulta. Pelo menos foi o que percebi pela alegria do meu pai e algum desagrado da minha mãe.

Tudo aconteceu num dia, que estávamos na ribeira à solta, os meus pais já tinham estado a lavrar. Lembro-me como se fosse hoje, um belo dia de primavera. Já tinham passados as maiores chuvas e a Ti Maria tinha dito ao Ti António:

– António, tens de ir lavrar a ribeira, que aquilo deve estar tudo cheio de erva.

Quando ouvi isso fiquei logo todo satisfeito. Não a minha mãe, que lavrar no início da primavera não é para brincadeira, a terra até pode estar mole da água, mas as ervas formam uma rede com as suas raízes que fazem com que se agarrem ao arado. O Ti António tem de volta não volta, tirar o arado da terra e arredar as ervas que parecem ancoras. E para além disso, o terreno mole faz com que as patas dos meus pais se enterrem na terra, especialmente na parte mais junto à ribeira, o que lhes retira força. Queixa-se a minha mãe, que ao meu pai nunca o ouvi queixar do trabalho:

– É como se a terra nos estivesse a fugir debaixo dos pés.

Mas para mim, que não tenho de lavrar, ir para a ribeira é de tudo o que mais gosto. Gosto do ir, do estar e do voltar.

Do ir é pela manhã, ainda a sol quase não nasceu e lá vamos nós, por uns caminhos ladeados de grandes muros de pedra de onde sai uma humidade misteriosa com um cheiro de bolores e fetos.

Isto é na primeira parte do caminho, quando ainda estamos próximos da aldeia. Depois, conforme vamos progredindo, a paisagem abre-se, indo de cabeço em cabeço, subindo e descendo em direção à ribeira.

Sobe-se um cabeço adivinhando o sol lá no cimo. E que sol, uma bola amarela alaranjada no horizonte, e depois desce-se para reentrar de novo na sombra e na humidade até à subida do próximo. A cada novo cimo lá encontramos o sol um pouco mais alto, mais despegado do horizonte, e vai desaparecendo a fresca da manhã.

A meio do caminho já o Ti António tirou o casaco e o pendurou num dos paus fueiros do carro de bois e vai a gozar a manhã em camisa. Acho que também ele gosta de ir à ribeira, que tirando o rio, é a viagem mais longa e é para ele como um passeio.

Durante todo o caminho levo as orelhas bem espetadas, e girando-as de um lado para o outro, na expetativa de ouvir o correr da água da ribeira. Tenho a certeza de que sou sempre o primeiro a dar por ela. Que para os meus pais nada disto é novidade e o Ti António sabe o caminho de cor.

Nesta altura do ano a ribeira corre forte, cheia de água cristalina, que saltita sobre as pedras e depois se deixa ficar em fundões. Sobre fundões vos contarei mais tarde, pois foi num fundão que entrei na idade adulta.

Por vezes, a água é tanta que para atravessar a ribeira tem o Ti António de subir para o carro e lá passamos com a ela pelos joelhos. Se calhar estou a exagerar um pouco, mas se não chega aos joelhos fica pouco abaixo do eixo das rodas.

Uma vez chegados à ribeira, o Ti António solta-me para eu ir pastar à vontade, enquanto ele vai rapidamente aparelhar os meus pais para começarem a lavrar, que a terra da ribeira é bem grande e ele de tarde quer cortar rama dos choupos para trazer de volta no carro de bois.

Aproveito estes momentos a sós para ir mirar-me na água. E que bonito eu me vejo. Essa é uma, das várias razões, pelas quais tanto gosto de ir à ribeira. É que, podeis ter a certeza, eu sou muito bonito. Tenho umas orelhas lindas, esguias e afiadas. E como elas são um espetáculo no ondular leve da água. Serpenteiam de uma forma que me entram pelos olhos adentro e me enchem o coração. Acho que conseguiria ficar para sempre a fitar estas orelhas. Já ouvi dizer que não é bonito ficarmos extasiados a olhar para nós próprios, mas que posso eu fazer. Já vos disse que esta é a história sobre o que sou, não é sobre o que os outros acham que deveria ser.

Não são só as orelhas que são lindas. Tenho dois olhos enormes de uma profundidade do tamanho da minha cabeça que me dão o ar de quem não só pensa sobre as coisas do mundo como tira as suas conclusões, conclusões tão fortes que não necessito de andar a contá-las pelos cantos da aldeia. E depois os meus dentes cerrados e brancos são lindos, lindos de morrer, que uso para fazer um sorriso inteligente quando zurro baixinho.

Deveis estar surpreendidos com esta vaidade, até porque se diz para aí que os burros são muito assustadiços quando veem água agitada. De facto, assim é, até a Ti Maria, que não prestou muita atenção à minha educação, costuma dizer a um sobrinho da cidade, que desta vida pouco sabe:

– É Tó, quando fores montado no burro, se houver água a atravessar o caminho, levanta-lhe a cabeça, que senão ele assusta-se e sai numa correria.

Ao que o miúdo pergunta:

– A sério tia, porque é que eles fazem isso?

Eu já percebi que é este é daqueles que por aqui aparecem com a mania de que gosta de aprender e é por isso muito perguntadeiro. No outro dia ficou a estancado a olhar-me nos olhos como um boi a olhar para um palácio. Esta gentinha que aqui vem e acha que sabe muito e depois se vai embora, conheço eu bem, pelo que meti tais olhos de burro que ele bem insistiu, mas saiu daqui como chegou, sem levar nada. Por mim não vai lá para a cidade a gabar-se que de burros sabe ele.

É assim, quando queremos contar uma história há sempre quem nos venha importunar, como as moscas. Voltemos ao que interessa, ao que a Ti Maria respondeu ao intrometido, e respondeu mais por desenfado, que por aqui dá-se mais importância às consequências do que às causas:

– Então, os burros são assim.

Como anda a Ti Maria enganada e a induzir o miúdo em erro.

Os burros não são todos iguais. E então um burro que tem por pais duas vacas posso-vos garantir que não é nada assim.

A primeira vez que estive junto a água corrente o pai Borisca estava ao pé de mim e disse-me com a sua voz calma ao ouvido:

– Castanho, vou-te ensinar uma coisa que fará de ti um burro diferente.

Como eu gosto daquela voz do meu pai. Às vezes até me coça um pouco a cabeça com os cornos quando me fala ao ouvido. Prosseguiu ele:

– Ouve com atenção. Estás a ver esse rego onde está a passar água. É do Ti Marcelo, que tem a mina do lado de cima do caminho e está a regar a horta que tem abaixo. Estás a ouvir este ranger. É ele com a picota a empurrar o caldeiro e a trazê-lo de volta. A Ti Elisa deve estar na parte de baixo a abrir e a fechar os regos para encaminhar a água. Daqui a pouco vais ouvir ela gritar e não vais perceber nada, mas o que ela vai dizer é:

– Ó Marcelo, ó Marcelo, já chega.

E prosseguiu o meu pai, que adorava ensinar-me coisas novas:

– Quero que te aproximes e olhes para a água, quando lá vires alguma coisas aos trambolhões quero que não te assustes, não é nada do outro mundo, é a tua imagem que fica distorcida com a água a correr.

Foi exatamente assim que ele me disse. O pai Borisca não é conversa fiada, fala quando tem coisas para dizer e fá-lo com precisão. Quando não tem nada para dizer fica calado.

Eu então aproximei-me da água e olhei sem receio, pois o meu pai estava ao meu lado. Vejam a sorte que tenho por não ter pais burros. Agora, não só não saio a correr que nem um doido porque me assustei com aquilo que não percebo como descobri que sou bonito.

Há para aí tantos burros que vivem uma vida inteira sem terem a mínima noção do bonito que são. E eu comecei a desfrutar desse prazer muito cedo, ainda bem antes de conhecer a Rosa.

Por isso, quando venho à ribeira, onde a água ondula larga e límpida, é uma alegria andar pelas suas margens a perscrutar os diferentes recantos, cada um único na forma como obriga a água a dar reviravoltas. E se no centro da ribeira a água vai por vezes ligeira, nas margens enreda-se lentamente, o que só exalta os meus enlevos. Por isso, quem passa, e acha que os burros são todos iguais, ao me ver junto às margens pode pensar ou mesmo dizer:

– O burro gosta de comer as ervas mais frescas e verdes.

Mas não, cá o Castanho anda é muito satisfeito com ele próprio. Não é que de vez em vez não vá lá alguma erva, e que bem me sabe. Agora, em verdade se diga que quando nos vemos bonitos não há nada que nos saiba mal.

Mesmo a minha mãe, a quem o meu pai nada contou do que me ensinou, por vezes comenta para o marido, enquanto estão a lavrar, pois volta não volta coloca a cabeça de lado para ver por onde eu estou:

– O que anda sempre o Castanho a fazer lá para baixo. Ainda cai à água em algum fundão.

Mas o meu pai, cujo deleite em me ver satisfeito é tanto maior quanto menos gente sabe que ele está na sua origem, responde:

– Deixa lá o miúdo que parece andar bem-disposto.

São bem diferentes o meu pai e a minha mãe. Ambos gostam de mim à sua maneira. A minha mãe tem por vezes uma preocupação desmesurada, como esta de estar sempre a ver por onde eu ando. Podemos pensar que se preocupa mais por mim que o meu pai. Também pensei isso no início, mas agora já não estou tão certo disso. É mais a maneira de ser dela. Aquela preocupação também tem a ver com uma curiosidade que nunca abandona. Por vezes não se contém e vai mexer onde não deve. Aconteceu revirar os baldes vazios de leite que o Ti António guarda no curral. Só porque sim, porque se lhe mete na cabeça que pode estar alguma coisa debaixo deles. O Ti António, quando percebeu que era ela que fazia isso até lhe disse:

– Ai Laranja, Laranja, estou a ver que te devia ter chamado era Criosa.

Mas não é Criosa, é Laranja, e eu gosto muito dela assim como ela é, mesmo que esteja sempre a ver onde me encontro e o que estou a fazer.

É muito ligada a mim, a mãe Laranja. Percebi isso verdadeiramente quando conheci a Rosa.

Foi na ribeira. Nem sei se poderia ser em algum outro lugar. Estava a ver-me num fundão, onde a água é mais escura e quase não vê mover. Era um perfeito espelho. Naquele dia estava particularmente bonito, com o pelo muito sedoso. O Ti António tinha-me escovado de manhã e até me tinha feito uma marrafinha. Fico muito bem com o cabelo assim a cair-me sobre os olhos.

Estava então a ver-me no fundão com a mãe Laranja por perto, pois não consegue estar verdadeiramente descansada, e o meu pai um pouco mais longe, mas atento para refrear os ímpetos dela. Quanto me entra pelas narinas um cheiro muito forte que sem mais me põe a zurrar, como nunca até aí tinha zurrado.

Era um zurrar daqueles que vem lá de dentro e não se consegue conter. Zurrava e zurrava sem parar, sentindo uma imensa alegria que me tomava o corpo todo. E então ouvi um outro zurrar, vindo lá do cimo do caminho. Virei a cabeça e vi pela primeira vez a Rosa. Tinha uns lindos alforges pretos, que indo vazios se lhe ajustavam muito bem ao corpo. Era linda, linda, como eu. Estava parada e fitava-me a mim e à minha família cá em baixo junto à ribeira. A Ti Joaquim procurava puxar por ela. Mas ela estava especada. Por entre os nossos zurros, ouvi o Ti António gritar para o Ti Joaquim:

– Pois é Joaquim, o burro é novo.

Acenou com a cabeça o Ti Joaquim puxando pela Rosa.

Ao meu lado foi o meu pai o primeiro a dizer alguma coisa:

– Olha, olha, o miúdo gosta delas mais velhas.

Mas disse-o com muita satisfação, diria até que com orgulho. Já a minha mãe respondeu-lhe entre dentes, olhando de lado para a Rosa lá em cima:

– Dizem que não é muito asseada.

E disse-o com desagrado. Eu, nem sequer percebo o que ela quer dizer com isso. Como é possível que um cheiro que me põe a zurrar assim tenha a ver com pouco asseio. A mãe Laranja às vezes não pensa no que fala, é como o meu pai diz, sempre preocupada com a opinião dos outros. Se calhar foram as cabras que badalaram, e o que é que elas sabem de asseio, cheiram bem cheiram, as cabras. São umas manientas, isso é que elas são, e umas lambisgoias, sempre a meterem-se onde não são chamadas.

Mas burro que zurra assim está-se bem a borrifar para o que os outros pensam ou dizem. A minha vida parecia que tinha dado um grande salto com as quatro patas e ainda estava no ar e nunca mais caía ao chão.

Nessa noite, que estava lua cheia, sem saber como, dou comigo na eira a bater bem forte com os cascos nas lajes. Como bem me sabia aquele dançar à luz branca, tinha de deitar cá para fora o entusiasmo que trazia nos músculos. E a marrafa a voar por cima dos meus olhos, trazia-me à memória o ondular da água da ribeira, onde, junto a mim, refletida na água, estava também a burra Rosa.

Quem não estava nada contente era a minha mãe, que veio lá do palheiro e se pôs à beira da eira a olhar desconsolada e a pedir-me, quase a suplicar-me:

– Para com isso filho, vem para cima.

Mas lá da porta do palheiro, o meu pai gritou cá para baixo:

– Mulher, deixa o miúdo, não vês que está apaixonado.

A minha mãe lá se rendeu, e começou a caminhar de regresso ao palheiro, cabisbaixa e dizendo entre dentes:

– Tudo me acontece.

Não sei bem o que aconteceu, pois a mim foi a primeira vez. Talvez a melhor explicação foi aquela que o Ti António deu à Ti Maria pela manhã:

– Maria, ouviste o Castanho durante a noite?

Ao que ela respondeu sentando-se sobre um balde para começar a ordenhar:

– Não.

O Ti António olhou para mim de lado e disse-lhe baixinho:

– Anda endiabrado.

Ao que a Ti Maria fez uma cara muito entendida e nada disse.

Como são o Ti António e Ti Maria que veem televisão, eles é que devem saber. Que me desculpe o pai Borisca, eu não estou apaixonado, estou endiabrado. E estou endiabrado pela Rosa. Agora, como é a primeira vez que estou endiabrado, não consigo dizer se estou muito ou pouco endiabrado, contudo, uma coisa posso garantir, endiabrado é muito.

Pela manhã procurei logo saber mais acerca da Rosa, a burra dos meus olhos. E soube de uma coisa que me deu que pensar. Quem me a contou foi o meu pai. A Rosa já é mãe de pelos menos cinco burros. Três do quais vivem cá na aldeia.

Pois é, por isto é que eu não estava à espera. Poder vir a ser pai assim de repente. Andar endiabrado tem as suas consequências. Não é só folgar e dançar à lua. Também traz as suas responsabilidades. Ver-me assim de repente com três filhos. Já não vou contar com os outros dois que foram embora. Não é que eu ache que não possa ser um bom pai. Não é só isso. Um deles, o Sacorro, tem fama de mandrião e rufião, para além de ser 3 anos mais velho do que eu. Já não vive com a mãe, é verdade, e até parece que lhe liga bem pouco. Quando passa por ela nos campos mal a saúda. Ainda assim não deixa de ser filho dela. E deve ser meu dever garantir que ele a respeita. O próprio Sacorro tem também um burreco. Como é que fui ficar endiabrado por uma mulher já com tanta criação.

O que vale é que tenho um pai como a Borisca, que é uma força de determinação. Nunca deixa de estar ao lado da mãe Laranja, mesmo quando andam às avessas é o pai que nunca desiste. Com um exemplo destes tenho a certeza de que saberei assumir a responsabilidade que me calhou em sorte.

Podeis estar certos disso. Todavia, também aprendi que na vida não vale a pena deitar muito os olhos para a frente pois muitas vezes as patas nos levam por outros caminhos. E já vais perceber porquê.

Desde o dia em que fiquei endiabrado, nunca mais saí do palheiro sem ter a certeza que tinha a marrafinha bem feita e o pelo escovado. Quando o Ti António não me o fazia pedia ao meu pai para me lamber com aquela língua áspera dele. Com os picos que tem na língua para raspar a erva, era uma excelente escova. E depois lá ia eu todo pimpão atrás do carro de bois, batendo forte com os cascos nas pedras redondas da calçada e os olhos e as narinas muito abertas a ver se dava pela Rosa.

Quando, passados uns dias, dei de caras com ela numa rua da aldeia, que eu tinha o vento de trás, nem foi possível começar a zurrar a sério. A Rosa, que com certeza já me tinha sentido antes, zurrou sim, no entanto eu percebi logo que era um zurrar diferente. Não tinha aquele ímpeto que nos arrebata, era mais um zurrar de galhofa, um zurrar miudinho, como quem zurra para dentro.

Com os diabos, se ainda há dias zurrámos endiabrados, e agora isto. Já me tinham dito que o mundo dá muita voltas. Dá que pensar. O que irá na cabeça da Rosa para cambiar de um dia para o outro. E não fui eu o único que estranhei, também o meu pai e a minha mãe se entreolharam, lá à frente, a puxar o carro, com caras de interrogação.

O que foi, foi que fiquei muito triste. A minha mãe passou o dia a tentar me animar. Até entrou pelo campo de milho adentro para me ir buscar uma maçaroca. A altas custas, que se diga, que quando o Ti António viu o milho amaçado e as pegadas da minha mãe logo lhe deu com a vara nas costas, gritando, como raramente o faz:

– Vaca de um raio.

Quanto a mim, que gosto tanto de milho, então quando está verde e tenrinho como este que a mãe Laranja escolheu para mim, soube-me a nada. A verdade é que o zurrar sem garra da Rosa me tirou o apetite. Comi tão pouco nesse dia como nos seguintes. A alegria transformou-se em melancolia. Deixei de ligar à marrafinha e mandava o meu pai embora com maus modos sempre que se oferecia para me escovar com a língua. E se continuava a ir à eira à noite, não era para dançar. Ficava ali calado a deixar passar a horas, a ver a lua a minguar até desaparecer, e apenas quando ficava tudo escuro regressava cabisbaixo ao palheiro.

Não sei se esta seria uma outra fase de se andar endiabrado. O meu pai e a minha mãe é que começaram a ficar verdadeiramente preocupados. E tão preocupados andavam que lhes ouvi uma conversa que mudou a minha vida.

Ocorreu numa dessas noites, ao regressar da eira, ao chegar à porta do palheiro ouvi a minha mãe lamentar-se:

– Como se chegou a isto…

– Tens a certeza de que elas disseram isso – perguntou-lhe o meu pai.

– Sim, exatamente.

– Sabes como elas são, não podes confiar em nada do que lhes sai pela boca.

– Não foram apenas elas, no outro dia no Ferrador a Esmeralda do Ti Joaquim chamou por mim junto ao muro, e ela repetiu exatamente a mesma coisa, e é uma vaca como nós.

– Provavelmente também o ouviu a elas…

– A Esmeralda, sabes como é a Esmeralda, é das poucas vacas por aqui há que não zomba de nós, não acredito que esteja a falar só porque sim.

Não se ouviu resposta imediata do meu pai. Aproveitei para deitar os olhos para dentro do palheiro e lá estavam eles, deitados sobre a palha a olhar um para o outro.

– Também não percebo como é que a Rosa se deixa ir numa conversa dessas – diz finalmente o meu pai.

– Eu bem te avisei que ela não era de confiança…

– Isso também já não interessa – interrompeu o pai – vamos ter de falar com o Castanho.

– Nem penses nisso, ele é meu filho.

– Laranja, sabes bem que ele é adotado, já lhe deveríamos ter dito há muito.

– O problema não é ser adotado, o problema é tu não seres um boi de verdade, esse é que é, o problema é o Castanho ter sido adotado por duas vacas, é isso que as cabras dizem, que isso não é natural, e agora ele está a sofrer as consequências. Nem a Rosa, que quando fica com a cabeça à roda não olha ao burro, agora o quer.

A mãe Laranja e o pai Borisca não são meus pais. E o pai Borisca devia ser um boi e não uma vaca. É isso que elas estão a dizer. As minhas pernas começam a tremer e vergam à altura dos joelhos. Encosto-me às pedras de granito da parede do palheiro para escorregar lentamente para o chão. Que conversa é esta, eles são os meus pais, nunca me questionei acerca disso, bem dizem que as vacas são ruminantes. Eu adoro a Laranja e a Borisca e até sabia do que dizem para aí de serem um casal de vacas. Nunca me importei com isso, mas agora o zurrar de riso da Rosa começa a ecoar na minha cabeça, dá-me a volta ao estômago, a tristeza desaparece e no seu lugar fica uma coisa que não sei o que é. É como um vazio na barriga que se junta à falta de apetite. Tudo somado. E ficar a saber que a Rosa não olha ao burro. Ela é assim? Eu que sou tão bonito, e afinal para ela é tudo igual ao litro…

Um cão começa a ladrar. Deve ser alguma raposa a rondar o galinheiro. A minha mãe assoma à porta e dá comigo prostrado. Não diz nada e deita-se ao meu lado encostando a barriga ao meu corpo. É pela primeira vez desagradável. Aquele calor dela incomoda-me. Afasto-me para junto da parede. Sinto-me encurralado. Levanto-me e digo:

– Hoje não me apetece dormir no palheiro.

Depois desse dia era como se já não tivesse nem pai nem mãe. Não fazia nada do que eles me diziam. Respondia-lhes torto. Procurava era estar sempre ao pé do Ti António. A Ti Maria até deu por isso:

– Ó António, o Castanho parece que se embeiçou por ti.

É que o Ti António é um homem, não era uma mulher a fazer de homem, e estava casado com uma mulher, que era a Ti Maria, e a Ti Maria não era um homem a fazer de mulher. E eu, o burro Castanho queria isso, queria ser filho de um homem e de uma mulher para que as burras como a Rosa não zombassem de mim. Burras que para umas coisas não olham ao burro e para outras estão armadas em esquisitas.

Se afinal era adotado, também poderia adotar eu quem quisesse como pai e assim resolvi que seria o Ti António.

O que aprendi com ele foi sobre as estrelas. À noite, em vez de ir para o palheiro ia para o fogão de pedra onde se sentava antes de regressar a casa. Eu que já andava com a ideia da adoção em mente, resolvi que aquele seria o melhor momento para me aproximar dele. Durante o dia estava sempre a trabalhar e a Laranja e a Borisca estavam por perto.

Estava então o Ti António sentado no fogão de pedra e eu andava por ali fazendo-me distraído quando me chamou-me falando do firmamento:

– Anda cá Castanho, sabes o que é o Cajado?

Sobre coisas do céu, ninguém deve saber mais do que ele. Dá nomes às luzes e depois começa a falar delas como se houvesse lá alguma coisa. A Laranja e a Borisca nunca me tinham falado disso, são muito terra a terra. Também é verdade que os homens têm um pescoço que se puxa para trás e assim conseguem ficar muito tempo com os olhos virados para cima.

– Sabes Castanho – diz-me o Ti António quando me vê aproximar.

Ele tirava o chapéu, que o Ti António até de noite usa chapéu, lá punha a cabeça para trás e falava para o ar com o chapéu na mão:

– Lá está a Estrela do Pastor. É um regalo vê-la, pois traz-nos de volta a casa. Dizem que certa vez um pastor já tinha guardado o seu rebanho no curral, lá no meio da serra, quando deu por falta de uma ovelha. Estava uma daquelas noites escuras como breu em que não via dois dedos à frente do nariz, pois não havia lua e as nuvens cobriam o firmamento. Foi quando ele ouviu lá muito ao longe um balido. Era a ovelha desaparecida.  Então lá foi à procura dela e na pressa esqueceu de levar a lanterna. Como a ovelha andava assustada teve de dar tantas voltas que quando a encontrou já não sabia onde estava. Foi quando começou a ouvir os lobos a uivar…

E aqui o Ti António poisou o chapéu na pedra, levou as mãos à boca em concha e começou a fazer o som dos lobos a uivar:

– Uuuuiiii, uuuuiiiii.

Eu até me arrepiei só de ouvir. Nem consegui controlar as minha orelhas, que rodaram de um lado para o outro para ver de onde vinha o som. Satisfeito por ver as minha orelhas às voltas depois de ter uivado, o Ti António prosseguiu:

– Teve o pastor tanto medo que se pôs de joelhos e começou a pedir ajuda a todos os santos que há no céu.

E isto disse ele olhando-me nos olhos e abandando a cabeça a dizer que sim, para eu ficar com a certeza que foi mesmo isso que ele fez.

– Foi então que no céu se abriram as nuvens e ele pode ver a Estrela do Pastor que o levou de volta antes que os lobos o alcançassem. Naquele sítio onde ele se ajoelhou fizeram a capela onde agora se vão benzer os animais. Lembras-te, Castanho, tu também lá foste. Até espirraste quando o Senhor Prior te atirou a água benta para o focinho.

Recordo sim, um dia o Ti António colocou-me um laço na cabeça e fomos à festa lá para os lados da ribeira. Foi um dia bem passado. Havia por lá muitos burros e bezerros da minha idade. Até nos deram umas maçarocas. Aquilo é que foi um manjar. Compensou a água no nariz.

É assim o Ti António, muito diferente do meu pai anterior, a vaca Borisca. Posso-vos contar algumas diferenças entre os dois.

A primeira é que o pai homem, o Ti António, gosta mais de falar sozinho do que o pai vaca. E fala muito do que não se consegue ver. A Borisca, quando era meu pai, nunca me falou de nada que não se visse. Mesmo quando me falava dos elefantes era como se estivessem ali pois eles eram parecidos com as coisas que nós víamos. Já o Ti António vê no céu o que eu não consigo encontrar. E não estou aqui a desdenhar do Ti António, longe disso. Ele olha lá para cima e eu o que gosto, o que me deixa satisfeito, é ficar a olhar para ele a olhar lá para cima. É que o Ti António de dia é uma coisa e de noite é outra.

Essa é a segunda diferença: a Borisca é sempre a mesma vaca, de noite e de dia. Nunca lhe dei por nenhuma mudança de humor relacionada com a hora do dia. Já o Ti António de dia é só trabalhar e tudo o que diz é para tratar da vida – vai buscar isto, traz aquilo – enfia-me uma saca na cabeça e coloca-me na nora, e depois dá estalos com a língua e diz “Castanho”, para eu começar a andar à roda. De dia tudo é prático e faz sentido. Agora de noite fala das estrelas, dos santos e das capelas. E em nada do que ele fala encontro eu alguma utilidade. Também é verdade que ele é mais meu amigo de noite do que de dia. Já a Borisca era amiga não interessava a hora.

A terceira tem a ver com as mudanças de humor. Se do Ti António já vimos que variam com a noite e o dia, as da Borisca vão e vêm com o humor da Laranja. As hesitações da Laranja, entre ser o não ser mulher da Borisca, dão a volta à cabeça do então meu pai. Nisso estavam verdadeiramente unidos, pois bastava ver como andava a Laranja para adivinhar como estaria a Borisca. Já o Ti António e Ti Maria andam sempre na mesma, na labuta do dia a dia. Mesmo quando o Ti António estica o pescoço para o céu e a Ti Maria se dobra para fazer a sopa à lareira na panela de ferro fundido, podem parecer muito diferentes, mas nunca a vi a ela preocupada com isso. E Ti António lá tira os olhos do céu, come a sopa, depois rói um naco de pão com um pedaço de queijo tão duro como o pão e então lá vai para a deita.

Deveis estar agora a perguntar se eu gosto mais dos pais Ti António e Ti Maria do que gostava dos pais Borisca e Laranja? Ou se até eu não gostaria era de saber quem eram os meus pais naturais, parece que é assim que se diz, os meus pais burros, pois devemos gostar mesmo é do que é natural.

Pois é, como vos disse o narrador logo no início desta história, há um momento em que deixamos de ser burrecos e começamos a pensar o que somos e o que andamos aqui a fazer. Por isso é normal que pensemos se gostamos mais do pai ou da mãe, ou se gostamos mais do pai ou do namorado da mãe, ou da mãe ou do namorado do pai. E se alguns destes gostares nunca me aconteceram a mim porém sei por ouvir falar, pois detrás destes olhos estão duas orelhas.

Ainda antes de vos contar a que conclusão chegou o burro que vos narra esta história, deixai-me contar-vos só um pouco mais.

Quando estava aquelas noites junto ao fogão de pedra em que o Ti António me falava do Cajado, da Estrela Boieira, da Estrela do Pastor, ou mesmo das Três-Marias, comecei a reparar nos meus antigos pais com os focinhos do lado de fora da porta do palheiro a ouvirem o que o Ti António dizia. Eram dois focinhos tristes, pois não ruminavam aquela hora, que era uma hora em que normalmente estariam deitadas nas palhas todas satisfeitas a regurgitar e ruminar o que pastaram durante o dia.

E depois, quando Ti António finalmente ia à sopa da Ti Maria e eu voltava para o palheiro, a Laranja e a Borisca fingiam que me ignoravam e começavam a falar das estrelas. Diziam assim:

– Sabes que hoje o Cajado está a bater nos Cabritos – começava a Laranja.

Ao que a Borisca juntava:

– Verdade, e a Estrela Boieira vai entrar por aquela porta e trazer-nos palha, e é da nova.

E assim continuavam a falar das estrelas, de forma desgarrada, cada frase para seu lado com o pasto no estômago, sem ruminar nada. E foi assim que a tristeza que sentia por mim desapareceu e comecei a sentir uma tristeza pelo pai Borisca e a mãe Laranja.

Foi então que percebi uma coisa. As estrelas colocam-nos as cabras à frente e parece que não há nada no mundo mais a não ser as cabras e o que as cabras dizem. Mas se não formos burros encontramos também nas estrelas o Cajado e a Estrela Boieira para colocar as cabras no seu lugar.

Por isso esta história tem uma moral. Também eu gostei muitos dos pais vacas e depois gostei dos pais homens e depois voltei a gostar dos pais vacas, sem deixar de gostar de quem gostava antes. E não sei se um dia irei gostar dos meus pais naturais, que não sei quem são, e podem até ser como a Rosa e o Sacorro, ou não. Agora a verdade, e essa afinal já me tinha sido dita há muito tempo pelo pai Borisca, só que eu não tinha percebido, é esta: o firmamento envia-nos naturalmente as cabras, cabe-nos a nós não lhes dar ouvidos.