Quando olhamos para a frente verificamos que o número de dias é finito. São exatamente 365. Isso traz-nos alguma serenidade. Sabemos que o de hoje foi o primeiro. Está quase terminado, amanhã será o segundo, e então poderemos recordar o primeiro, percebê-lo com distinção, como ele realmente foi. E não só no segundo dia, mas em todos os outros o poderemos trazer à memória, a ele e a qualquer outro que já tenha passado. Quanto aos dias que faltam nada poderemos fazer, para esses é necessário esperar que aconteçam antes de poderem ser recordados.
Tudo isto é tão óbvio que nem sequer seria digno de nota e não mereceria estas parcas palavras se não fosse um outro facto que, entretanto, constatei. Este ano é, de acordo com a astronomia Baktun, o ano da areia, aquele que terá 365 dias mas esses dias serão infinitos.
Ao princípio fiquei surpreendido e não queria acreditar. Como é possível que tenha 365 dias e eles sejam infinitos? Claro que poderia esperar pelo dia de amanhã, ver se o dia de hoje seria o dia de hoje, se ao recordá-lo ele seria exatamente como aconteceu. Se assim fosse, se não vislumbrar nele um qualquer outro primeiro dia, então teria a certeza de que este dia era único e ocuparia o seu lugar como sendo o primeiro. Mais ainda, se cada dia impedir outro de usurpar o seu lugar teremos efetivamente 365 dias e eles não poderão ser infinitos.
Contudo, a dúvida levantada impede-me de seguir esta estratégia. E se for verdade? Então não posso esperar pois se o fizer, e resta menos de uma hora para o primeiro dia acabar, se os dias forem infinitos, irei perder a memória deste para poder recordar o outro. Confesso que também não sei o que possa fazer se chegar à conclusão que é verdade, mas ainda assim vou tentar conjeturar como é possível que 365 dias sejam infinitos e depois pensarei como impedir o esvaziamento da memória deste dia.
Ocorre-me que talvez eles sejam mesmo apenas 365, mas que estejam entrelaçados. Que a memória de um dia seja amalgamada com as memórias dos restantes dias. Ou que de facto os dias não possam ser recordados, mas que atribuamos as memórias aos dias para estas serem mais verosímeis. Que quando julgamos recordar um dia estejamos sim a inventá-lo, a juntar um conjunto de memórias e a dar-lhe um nome de dia.
Dizemos com vaidade, este foi o primeiro dia. Mesmo quando voltamos a recordar essas mesmas memórias, aquelas que atribuímos àquele dia, elas vão-se amalgamar com outras memórias, e lá teremos outro primeiro dia.
Se esta conjetura for verdadeira então é monstruoso, pois o dia de amanhã também poderá ser construído com memórias, como um qualquer outro dia que passou. Desta forma, hoje, agora, neste primeiro dia deste ano os 365 dias são infinitos e já todos aconteceram.
Olho para o relógio, são 23:59 e, mais por instinto do que por convicção, procuro as memórias deste dia.