Os da nossa espécie temos o dom da ubiquidade pelo que não distinguimos estar de viajar, mas existem outras espécies que não são assim.
Tinha adquirido o hábito de viajar num lugar chamado Floresta, num momento a que chamavam sábado. Era um lugar rodeado de outros lugares, girando todos em volta de uma estrela, ao mesmo tempo que rodavam sobre si mesmos. Esta circunstância, à qual não conseguiam escapar, delineou o seu destino, que por isso está fechado em repetições e simetrias. Dos vários seres que o habitam, há uns, um pouco desmesurados, que me intrigaram. E não é completamente rigoroso dizer que sejam uns, pois diziam-se dois ou muitos, mais pela simetria a que estavam condenados do que por vontade própria. Para se distinguirem davam-se nomes, por exemplo, os seres dividiam-se em dois tipos, os homens e as mulheres. A obsessão de dar nomes e, com as viagens comecei a perceber, de se diferenciarem, era espantosamente incessante num lugar onde tudo se repetia.
Para vos poder descrever este lugar tenho que tomar uma das suas formas, pois só ganhando um nome e um corpo podemos perceber o que aí acontece. Tomei a forma de um ser do tipo homem, jovem, de óculos, falhas nos dentes e com algumas borbulhas na cara. Sim, sei que estou a usar nomes que desconheceis, mas não será a leitura do que escrevo que vos permitirá compreender esse lugar, todavia tenho esperança que quando lá viajardes vos recordareis do que aqui fica escrito e então percebereis.
Sob a forma deste ser viajava na Floresta aos sábados numa altura em que os homens e mulheres, homens a maior parte deles, se reuniam para aquilo a que chamavam almoçar. Um ritual que consistia em incorporarem outros seres dentro de si. Era um ritual de satisfação, uma satisfação que aumentava à medida que iam integrando mais seres.
O empregado, é assim que se chama aquele que traz os seres para serem ingeridos, faz rápidas corridas entre as mesas e uma pequena portinhola para onde grita e de onde sai a comida. Seres coloridos, quentes e fumegantes, despedaçados e prontos a serem deglutidos, rapidamente pelos que estão sós, com vagareza pelos que estão acompanhados.
Ao longo das visitas fui conhecendo os que repetidamente vão ao sábado almoçar à Floresta. Existe um homem pequeno e agitado que gesticula e fala muito, o que leva os restantes a também gesticularem e rirem todos juntos. Não percebo bem o que diz, mas como neste lugar tudo se repete, também eu me rio.
Depois há aquele casal, um homem e uma mulher, que entram e se sentam numa mesa ao centro, à volta do qual vão girando os outros homens, conversando com o homem e lançando olhares fugazes à mulher. Há também nela satisfação, finge que os ignora e segura-se no homem como este lugar se segura na estrela sobre a qual gira.
Aos poucos também vou participando no ritual, tendo inclusive começado a me deixar enredar naquela satisfação, talvez por me parecer uma forma primitiva, ainda que grosseira, de ubiquidade. Ao mesmo tempo que me deixo envolver vou procurando na escrita deste lugar algo que o justifique. Encontro uma frase de alguém com o nome de Marguerite Duras, o vinho existe porque Deus não existe. Percebo que o vinho que existe é o que está dentro daquela garrafa para que apontei da primeira vez. Nessa altura o empregado olhou para mim surpreendido, mas agora, mal me sento, logo me a traz com um piscar de olho. Sinto agora alguma curiosidade de saber o que é o Deus que não existe.